As redes sociais cumpriram um papel inovador e marcante na Primavera Árabe, como ficou conhecida a série de protestos realizados em países árabes do Norte da África e do Oriente Médio, a partir de dezembro de 2010, contra regimes autoritários e por melhorias na qualidade de vida da população.
As manifestações tiveram início na Tunísia e, com o auxílio das redes sociais, rapidamente tomaram conta das ruas de outras nações, como Egito, Líbia, Síria, Iêmen, Barein e Marrocos.
Pois as mesmas plataformas digitais, especialmente o Facebook, que ajudaram na disseminação dos ideais de liberdade e democracia, se tornaram ferramentas de repressão, desinformação, doxing e campanhas de ódio para atacar e silenciar mulheres que se opõem ao governo, defensores dos direitos humanos e instituições democráticas. Esta é a principal análise e conclusão do estudo de caso publicado, no último mês, pela organização #ShePersisted, assinado pelas pesquisadoras Lucina Di Meco e Sarah Hesterman.
O contexto histórico
Após a expulsão do ex-presidente Zine El Abidine Ben Ali, em 2011, a Tunísia viveu um transição democrática histórica, com grande esperança e expectativas, relata o estudo.
Muitos tunisianos – incluindo ativistas feministas – viram isso como uma oportunidade de finalmente ter acesso aos direitos políticos e civis que não puderam exercer sob o antigo regime e para promover o direito das mulheres. A elaboração de uma nova constituição em 2014 também anunciou um avanço sem precedentes para governabilidade democrática.
No entanto, o entusiasmo inicial foi dando lugar a desconfiança nos processos políticos com o país afundando em crise econômica, denúncias de corrupção e ameaças à segurança nacional.
Como muitas pessoas ficaram cada vez mais desencantadas com as promessas da Primavera Árabe, o líder autoritário Kais Saied foi eleito presidente em 2019 por meio de um partido populista e discurso de combate à corrupção, com amplo apoio de secularistas e islâmicos.
Impactos na democracia e sobre as mulheres
O relatório aponta que, a partir daí, mulheres candidatas e políticas passaram a enfrentar violência de gênero facilitada pela tecnologia, em meio a eleições que foram profundamente impactadas por esforços para retroceder a democracia.
As plataformas digitais passaram a ser usadas como armas para a prática do doxing sobre ativistas feministas e aqueles que são mais abertamente contra o governo autocrático – empurrando essas vozes para fora da arena pública e, com efeito, suprimindo as questões que defendem. Estudo de 2019 realizado pelo International Republican Institute na Tunísia descobriu que 74% das mulheres entrevistadas temiam se engajar na política devido ao medo de violência.
Em 2023, as eleições parlamentares tiveram uma participação de apenas 11,4% da população e apenas 11,5% dos candidatos eram mulheres.
De acordo com um estudo da ONU Mulheres nos Estados Árabes, 70% das mulheres ativistas e defensores dos direitos humanos na região disseram se sentir inseguros online, depois de receber insultos e mensagens de ódio e conteúdo sexual indesejado e 35% deles relataram a existência de uma continuação da violência online para o offline.
A ativista Lina Ben Mhenni, em retaliação ao seu ativismo durante a Primavera Árabe, enfrentou intimidação, campanhas de difamação, abuso online e ataques físicos. Falando sobre sua experiência em 2013, ela afirmou: “Sinto-me ameaçada apenas por blogar e criticar o governo e a terrível situação de retrocesso na Tunísia. Eu estou em uma lista de ameaças de morte e sob proteção policial. Eu sinto que perdi a liberdade enquanto tento lutar pelo meu país e a liberdade do meu povo.” Ben Mhenni morreu em 2020, sem ver a mudança desejada.
De acordo com Khawla Ksiksi, co-fundadora do coletivo de Mulheres Voices of Black Tunisian, os comentários racistas do atual presidente iniciaram uma nova onda de racismo em um país onde as mulheres negras já vivenciam a opressão interseccional: “como tunisianos negros nós temos que provar constantemente que somos suficientes.”
A negligência do Facebook
Nesse contexto, as empresas de mídia social têm enfrentado críticas duras por não proteger melhor os ativistas e processos democráticos na Tunísia. O Facebook foi especificamente criticado no relatório por falhar em fornecer aos pesquisadores informações sobre anúncios patrocinados durante as eleições de 2019 naquele país.
A empresa falhou em fornecer transparência sobre suas ações e apoio às operações para monitorar o conteúdo durante o período eleitoral, e os monitores dependiam muito da análise manual. Os observadores da Tunísia também não foram autorizados a ver informações, segundo o estudo, como a quantidade de dinheiro gasto ou o público-alvo de anúncios políticos patrocinados que não estavam mais ativos.
Embora o árabe seja a quarta língua mais utilizada online, o Facebook tem sido repetidamente acusado de não priorizar os defensores da democracia onde o árabe é falado. Segundo ativistas ouvidas no estudo, o Facebook não implementou quaisquer medidas específicas para neutralizar desinformação na região durante as eleições, crises políticas e mudanças de regime. Mas agiu de forma diferente e mais atenta em outras partes do mundo, como a União Europeia e os EUA.
O estudo
O estudo da organização #ShePersisted contou com pesquisa documental, monitoramento de postagens em algumas mídias sociais comoTwitter e Facebook e entrevistas com ativistas locais dos direitos das mulheres, mulheres na política e especialistas.
As autoras ressaltam a resposta tímida das redes – e o Facebook em particular – a ameaças a direitos das mulheres e à democracia no país e a falta de priorização das medidas de transparência e prestação de contas, espcialmente durante eleições.
Como a Tunísia é considerado um dos países mais avançados sobre os direitos das mulheres e democracia no Oriente Médio e Norte da África, as autoras acreditam que o que está acontecendo lá é particularmente importante e representa um alerta da fragilidade para muitas novas democracias. O relatório pretende expor o potencial danoso das mídias sociais neste contexto.
De acordo com Ikram Ben Said, ativista fundadora do Voices of Women, “ao testemunharmos o abandono das promessas da revolução de ‘liberdade, dignidade e justiça’, devemos lembrar que não há democracia sem os direitos das mulheres e não há direitos das mulheres sem democracia.”
O relatório na íntegra (em inglês) pode ser lido aqui.