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Pontos de vista

jul 31, 2023 | pontos de vista

Desinformação: o caminho da transparência e da prestação de contas

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Há cerca de cinco anos, diferentes setores da sociedade brasileira se debruçam sobre propostas legislativas para combater o fenômeno da desinformação. O debate vem amadurecendo no país e, gostemos ou não, o projeto de lei 2630/2020 continua sendo o centro dessas discussões. Agora, o Congresso dá indícios de que sua tramitação deve ocorrer no segundo semestre de 2023. 

Quando o tema é combate à desinformação, é comum que a primeira preocupação da população, de plataformas e de políticos envolva riscos à liberdade de expressão. Ora, se é preciso definir o que é verdade ou mentira, quais tipos de discursos são aceitáveis e quais não, é natural que essa seja uma preocupação – e um risco real para qualquer regulação sobre a matéria. Neste artigo, vamos explorar essa tensão e sugerir um caminho para mitigação de riscos.

Desinformação e o risco a direitos humanos

Convidamos você, pessoa leitora, a acessar o website do Committee to Protect Journalists (CPJ) e buscar na base de dados o número de jornalistas presos por disseminar “notícias falsas” ao redor do mundo. Agora, sugerimos que você filtre ano a ano, de 2022 até 2012. Se fizer isso, verá que, em 2022, 39 jornalistas foram presos por disseminar desinformação. Em 2021, 51. No ano anterior, 37, antes disso, 34, em 2018, 28. Já em 2012, um único jornalista havia sido preso, no Irã, por disseminar “notícias falsas”. Historicamente, jornalistas são perseguidos judicialmente a partir de outras previsões legais, como a calúnia, difamação e injúria, os crimes contra a honra. Há, porém, uma tendência crescente, particularmente em países autoritários, em usar previsões jurídicas sobre a desinformação para atacar e prender jornalistas no exercício de sua profissão.

As “notícias falsas” se tornaram uma base comum para perseguir e prender jornalistas em Myanmar, no Irã, Egito, Rússia, Camarões, dentre outros países. Esse é um risco a se considerar no Brasil? Quando observamos o ranking mundial da liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, divulgado anualmente no dia 03 de maio, notamos que nosso país não se encontra em uma posição confortável, de ampla garantia de direitos aos jornalistas. De 180 países estudados, o Brasil se encontra em 92º lugar. Basta lembrar dos casos de Elvira Lobato e de Lúcio Flávio Pinto para perceber como previsões legais que tem por objetivo garantir maiores direitos à população podem ser abusadas para remover direitos, por exemplo o da liberdade de expressão.

No caso de Elvira Lobato, os Juizados Especiais Cíveis (JECs), uma previsão para ampliar o acesso à justiça, foi instrumento para inviabilizar o trabalho investigativo da jornalista, que precisou se deslocar fisicamente por diferentes tribunais espalhados pelo Brasil para se defender de um assédio judicial. Isso significa que os JECs são um fracasso? Claro que não. Mas é preciso que as características que possibilitaram abuso a partir dos JECs sejam ajustadas, o que vem sendo articulado por entidades como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). De forma semelhante, o debate sobre desinformação no Brasil não deve parar por riscos associados a direitos, mas deve considerá-los a priori, com o objetivo de reduzir as possibilidades de abuso.

O passo fundamental que vem sendo dado no PL 2630 e precisa continuar a ser aprofundado é o deslocamento do foco da legislação – de qualquer legislação sobre a matéria. É preciso deslocar o debate sobre a desinformação do aspecto qualitativo da mensagem, do conteúdo, para a infraestrutura sociotécnica que possibilita a circulação de determinadas mensagens. No PL 2630, a transparência e a prestação de contas se tornaram elementos centrais da regulação, além de obrigações de análises e mitigação de riscos sistêmicos. Esse é o caminho de menor risco a direitos.

Desinformação, plataforma e transparência

O ato da comunicação desinformativa é altamente contextual e não pode ser analisado de forma isolada, ou seja, independentemente do emissor, receptor e outros elementos que configuram o campo de sentido das mensagens. Além disso, o efeito da desinformação ocorre essencialmente em uma dimensão psíquica, que passa por inúmeras mediações e interferências que tornam quase impossível o isolamento de instâncias do comportamento individual ou coletivo que guardem relações de causa e efeito com mensagens emitidas. Há muito espaço para abordagens que tentem superar essas limitações. Abordagens que não partam de premissas valorativas sobre o conteúdo da mensagem, mas que encarem o conjunto de práticas na qual os atores em rede estão imersos, observando as propriedades da tecnologia e os comportamentos sociais.

Essas abordagens podem ser tratadas como agnósticas, ou seja, aquelas que buscam qualificar a desinformação a partir do comportamento e não a partir de uma análise sobre o conteúdo da mensagem. No Instituto Vero, recentemente desenvolvemos uma pesquisa que partiu dessa premissa conceitual. Analisamos o Instagram para descobrir quais recursos da plataforma poderiam ser comercializados em mercados paralelos, inclusive para operações de influência e desinformação.

Identificamos um amplo e variado mercado de comportamento inautêntico na plataforma. Um mercado de vendedores e compradores de funcionalidades, como curtidas, comentários, salvamentos, marcações, e recursos de forma ampla, como seguidores, visualizações e impressões, que contribuem para a perda de confiabilidade e autenticidade do conteúdo que circula na plataforma. Essa descoberta nos ajuda a afirmar que, embora o “comportamento inautêntico” seja uma prática proibida pelo Instagram, a fiscalização concreta e a aplicação das regras são pouco eficazes. 

Esses recursos podem ser comprados por interesse próprio, como parte de busca egóica, mas as mesmas ferramentas e estratégias também estão disponíveis para atores que buscam influenciar eleições, bem como espalhar desinformação e discurso de ódio. Isso nos mostra que os desafios no ambiente digital não ficam somente no conteúdo, mas na própria estrutura das plataformas de mídia social. Pesquisadores, ativistas e formuladores de políticas devem observar essa estrutura ao definir estratégias para enfrentar questões relacionadas ao discurso e ao comportamento inautêntico que afetam nossa esfera pública.  

A pesquisa foi apresentada aqui de modo a ilustrar como o fenômeno da desinformação se expressa de maneira múltipla e como existem abordagens, inclusive regulatórias, que podem fugir do senso comum sobre valoração de conteúdos para aprofundar discussões mais sistêmicas,  efetivas e garantidoras de direitos para os desafios de manipulação do debate coletivo. As boas regulações, em particular, devem caminhar nesse sentido, sempre prezando pela ampla participação multissetorial e democrática em espaços de tomada de decisão.

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Victor Vicente e Victor Durigan

Victor Vicente é head de comunicação no Instituto Vero. Ele é doutorando em ciências da comunicação (USP), mestre em comunicação e cultura (UFRJ), pós-graduado em marketing e design digital (ESPM) e graduado em jornalismo (Uerj). Foi coordenador de comunicação do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) entre 2015 e 2019, além de ter sido pesquisador do MediaLab.UFRJ entre 2017 e 2019. Se interessa por aplicações tecnológicas que proporcionem impacto social positivo e distribuído.

Victor Durigan é coordenador de relações institucionais no Instituto Vero. Ele é bacharel em Direito pela USP, com foco em Direito Constitucional e processo legislativo. Trabalhou com políticas públicas e relações institucionais no setor privado em Brasília e São Paulo. Se interessa pela intersecção entre política e tecnologia e escreve sobre o tema na newsletter Descodificado.

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