“Não consigo contar o número de vezes que fui agredida no mercado ou na rua por conta de mentiras contadas e espalhadas a meu respeito. Há pelo menos oito anos eu sinto medo por mim e pelos meus”, Manuela d’Ávila, 41, jornalista e ex-deputada.
No dia 28 de maio de 2022, Manuela d’Ávila, um dos principais nomes da política do Rio Grande do Sul e do Brasil, anunciou em suas redes sociais que não iria concorrer a nenhum cargo nas eleições deste ano. O motivo? “Estive na linha de frente nas eleições majoritárias de 2018 e 2020. Esses processos foram duros e violentos para mim e para minha família”, escreveu a ex-deputada federal e ex-candidata à vice-presidência em suas redes sociais.
As informações falsas sobre a vida de Manuela aumentaram quando, em 2014, ela concorreu a uma vaga de deputada estadual no Rio Grande do Sul. Naquele mesmo ano, veio a primeira agressão. Manuela estava tomando café com seu marido quando um jovem começou a agredi-la por conta de uma notícia mentirosa publicada em um perfil do Twitter, que rapidamente se tornou viral.
Nos últimos anos, talvez ninguém tenha sido alvo de tantas e tão delirantes notícias falsas quanto Manuela D’Ávila. O auge das mentiras foi em 2018, quando concorria à vice-presidência em uma chapa com Fernando Haddad e foi acusada de ter ligado 18 vezes para Adélio Bispo no dia em que ele esfaqueou Jair Bolsonaro. A montagem dela usando uma camiseta com os dizeres “Jesus é travesti” talvez seja a que mais circulou pela internet e estourou a bolha da extrema-direita. Em comum, o conteúdo apela à moralidade da população conservadora brasileira, ao usar e abusar do fato de Manuela ser abertamente marxista e feminista.
“Eu lembro que no último ato de rua que eu fiz no primeiro turno, em 2020, recebi quando estava no carro um vídeo que me mostrava sendo presa. Eu nunca fui presa, não é um vídeo reeditado, é um vídeo montado, um vídeo-reportagem, que é uma das formas que eles atuam, simulando falsas reportagens”, Manuela d’Ávila.
Uma mudança de comportamento nessa produção e difusão de conteúdo falso, porém, aconteceu nos últimos anos e a desinformação passou a afetar violentamente uma pessoa em especial: Laura, sua filha.
Medo por mim e pelos meus
Já durante a gestação, Manuela foi alvo de diversas formas de manipulações e mentiras. Quando estava grávida de quatro meses, o Movimento Brasil Livre (MBL) e alguns blogs de extrema-direita afirmaram, insinuando o uso irregular de dinheiro público, que ela tinha ido aos Estados Unidos fazer seu enxoval. Uma foto de seu enteado ainda criança foi usada para embasar essa afirmação falsa e ele também passou a ser atacado nas redes sociais.
“Quando Laura nasceu, o relato detalhado do meu parto foi feito nas redes sociais por uma médica que conseguiu informações e fez com que o dia seguinte do nascimento de minha filha se transformasse numa batalha para barrar as publicações e comentários de ódio a nosso respeito. Quando Laura tinha 45 dias, foi agredida fisicamente, porque uma mulher que acreditou na fake news do enxoval nos Estados Unidos e também na ideia de que, uma mulher como eu, não poderia ter roupas para sua filha, porque na Coreia não era assim”, Manuela d’Ávila.
Todas as pessoas ao redor de Manuela foram afetadas. Seu marido foi expulso de um clube porque era “casado com uma comunista”. Até mesmo sua mãe já foi ameaçada de morte em mensagens recebidas em redes sociais. Entre esses episódios de violência, Manuela e sua filha foram intimidadas por uma agressão que toda mulher conhece muito bem: o estupro.
Em 2021, Laura foi fotografada na porta da escola em que estudava. A imagem foi distribuída por meio das numerosas e extremamente complexas redes por trás desta verdadeira indústria de desinformação. A foto chegou aos grupos de ódio e foi muito usada para ameaçar mãe e filha de morte e estupro.
Mais tarde, quando Manuela falou publicamente sobre essas ameaças que sofria – e ainda sofre – de forma constante, a reação de solidariedade das pessoas causou estranheza, e foi quando ela se deu conta que ninguém tinha a mais vaga noção de como aquela violência já, lamentavelmente, fazia parte do seu cotidiano.
“Vocês não sabiam que era assim? Vocês não tinham ideia de que eu vivo assim desde que a Laura nasceu? Vocês acham o quê? Uma vez a agrediram com 45 dias, que depois virou tudo paz e amor?”, Manuela d’Ávila.
Não apenas mensagens enviadas por pessoas sem rosto assustam Manuela. Na frente de sua casa, em 2018, já estacionaram um jipe de aparência militar com palavras a favor de Bolsonaro na lataria e uma bandeira do Brasil hasteada na parte superior do veículo. Na época, seu enteado tinha quinze anos e Laura tinha acabado de completar três. Ambos os jovens passavam por aquele local diariamente para ir à escola.
“Eu já era a que defendia o kit gay. Eu já era a que defendia o abuso sexual de criança. Eu já era maconheira. Eu já tinha tatuagem do Che. Eu já tinha tatuagem do Lenin. Tudo isso está contido no imaginário social, então eles reaquecem isso e colocam mais um pontinho na minha frente”, Manuela d’Ávila.
O dano é subjetivo
Entre tantas mentiras espalhadas sobre Manuela, a Justiça brasileira se posicionou algumas vezes. Ela já venceu processos contra Roberto Jefferson, ex-presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já determinou que mais de 91 links fossem removidos de plataformas como Facebook, YouTube, Instagram e Twitter.
Mesmo assim, a resposta às violências cometidas contra Manuela e sua família nunca foram suficientes. O processo de tomada de decisões é lento e até a retirada da desinformação, milhares de pessoas já entraram em contato com aquela mentira. Além do mais, a política também aponta que o tempo e o esforço para se espalhar uma fake news é consideravelmente menor do que para desmentí-la.
Como exemplo, podemos lembrar do conflito entre Leonel Brizola e a TV Globo na década de 1990, quando o político teve um “direito de resposta” garantido pela Justiça e exibido no Jornal Nacional. Na prática, esse tipo de medida revela-se fundamental, pois garante, pelo menos à princípio, que a verdade tenha a mesma exposição que a mentira.
“O que interessa o número de ações que eu ganho ou ganharei contra o prefeito de Porto Alegre? Ele não conseguiu tirar votos meus. Ele conseguiu fazer com que uma parte imensa da população não fosse votar, porque aumentou o número de pessoas que decidem não se envolver ´nessa baixaria que é a política”, Manuela d’Ávila.
Um levantamento da revista AzMina observou que, entre os dias 15 e 18 de novembro de 2020, Manuela foi a figura política feminina, dentre as analisadas, que mais recebeu ataques virtuais, com 90% das menções. Não há como reparar o dano causado por essa onda de ódio e violência ao pagar-se uma quantia de dinheiro para a vítima. Esse tipo de dano é completamente subjetivo e absolutamente incalculável.
Nunca foi só fake news, é um sistema
A máquina de desinformação tem alvos bem específicos e, desde que essa lógica de produção e compartilhamento de conteúdo falso se estabeleceu no Brasil, Manuela foi um alvo preferencial, assim como o ex-deputado Jean Wyllys, que desde 2019 se mudou para fora do Brasil com medo de tanta violência a que foi submetido ao longo dos últimos anos. Segundo ela, ambos foram parte de um “laboratório de distribuição de uma política de comunicação que sustenta a extrema-direita”.
“Eu tenho uma vida absolutamente transformada pelo conjunto de mentiras que são ditas e repetidas a meu respeito nesse último período. Ao mesmo tempo, eles não miram em mim por acaso, não é? Em toda a região sul do Brasil, a única pessoa que lidera a pesquisa majoritária sou eu. As mulheres votam em massa no nosso campo político. Se eles aniquilam essas lideranças mulheres que surgiram e que surgem, é mais fácil tentar resgatar uma parte desse conjunto do eleitorado”, Manuela d’Ávila.
O sistema de desinformação está em constante transformação, justamente por se utilizar das novas ferramentas tecnológicas que aparecem. A nova Lei Geral de Proteção de Dados ainda não é capaz de impedir que essas mentiras produzidas sejam divulgadas. Esse processo acontece justamente porque as comunidades online estão muito bem capilarizadas por essa indústria, contado com a participação de vários setores da sociedade.
“Nunca foi só fake news, é um sistema. Um sistema que também tem omissão da imprensa. A imprensa viu o que acontecia comigo em Porto Alegre e não falou nada, isso também é um papel ativo. Eles trabalham com dados ultra minerados, cada vez mais”, Manuela d’Ávila.
Manuela também explicou como, entre altos e baixos, em momentos críticos do governo Bolsonaro, ela volta a ser o alvo e, depois de ter algumas mentiras contadas sobre uma determinada figura política, é muito mais fácil fazer as pessoas acreditarem em outras.
É pelas questões com a violência, contra si mesma e contra seu círculo social, que Manuela optou por não disputar as eleições de 2022 e sua visão sobre esse cenário não é otimista.
“É patético a gente achar que 2022 vai ser melhor que 2018. Vejam bem, eu achava, quando eu aceitei disputar em 2020, que ia ser muito mais fácil que 2018, porque eu pensava assim: ‘Nossa, eu disputei 2018 contra o Bolsonaro, o que vai ser pior que isso?’”, Manuela d’Ávila.