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Atingidas pela desinformação: Bianca Santana

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“Ninguém devia se preocupar tanto com a própria segurança, se a gente vive num Estado que devia cuidar da segurança de todo mundo. Então, quando essa angústia cresce muito, porque sei que não tenho o controle, eu consigo lidar com ela no coletivo: falando sobre isso. A gente precisa falar sobre o quanto o Brasil é machista, racista, autoritário e violento desde sempre e que, enquanto não mudar a estrutura, a gente não vai ter paz” – Bianca Santana, 38, jornalista e militante feminista negra.

Era 28 de maio de 2020. Em uma de suas lives de quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro acusa nominalmente a jornalista Bianca Santana de propagação de desinformação. Bianca estava de férias quando começou a receber diversas mensagens no celular perguntando: “O presidente está falando de você?”. Ela começa a pesquisar sobre o que poderia estar acontecendo e logo se depara com seu rosto estampado em diversos portais de notícias.

A acusação ocorreu na mesma semana em que Bianca publicou um artigo criticando a possível federalização das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, em 2018. O ataque de Bolsonaro, tão direto e imediato, não era uma mera coincidência.

“Quando eu acuso alguém e posto algo sobre, é como se eu pintasse um alvo naquela pessoa. Então, na hora em que o Bolsonaro menciona um jornalista, é como se ele dissesse pro seu secto – cada vez mais armado: ‘ó, essa é uma pessoa que vocês podem buscar” – Bianca Santana

Bianca levou o caso à Justiça brasileira e, junto com outras organizações, para a ONU (Organização das Nações Unidas). A jornalista queria um pedido de desculpas público, a exclusão no YouTube da live na qual o ataque foi realizado e uma indenização de 50 mil reais.

Um mês depois, em 30 de julho, já com o processo correndo, Bolsonaro se utilizou de outra live para fazer um pedido de desculpas à jornalista.

“Eu quero ler uma nota porque eu erro também. Não vou culpar a minha assessoria, mas eu erro. Lamento o ocorrido na live de 28 de maio. Peço desculpas à jornalista Bianca Santana. Eu fiz a referência a várias reportagens de fake news, e uma falei que era dela. Não era dela, tinha o nome dela lá embaixo. Houve equívoco da minha parte. Não era da jornalista Bianca Santana, minhas desculpas a Bianca Santana por esse equívoco nosso. Inclusive, já mandei retirar toda a live do ar. Da nossa parte, não tem problema se desculpar quando erra” – Jair Bolsonaro, em live

A live foi excluída e, no dia 18 de agosto de 2021, o juiz César Augusto Vieira Macedo, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), condenou o presidente a pagar uma indenização à jornalista por danos morais de 10 mil reais. Bolsonaro recorreu da decisão. Quando for pago, o valor será doado para o Instituto Marielle Franco, organização criada para inspirar, conectar e potencializar mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade por um mundo mais justo e igualitário.

Bianca Santana doou o valor da indenização para o Instituto Marielle Franco

A condenação, feita em primeira instância e corroborada em segunda, teve gosto de vitória coletiva.

“O parecer fala em violação da pessoa humana e, quando a gente tem um documento do judiciário votado, isso reafirma que é inaceitável a violação de direitos por quem deveria garanti-los; e não usar o Estado para atacar jornalistas ou qualquer pessoa” – Bianca Santana

Durante o processo, a jornalista contou com o apoio da Coalizão Negra por Direitos, grupo que reúne organizações, entidades e coletivos do movimento negro brasileiro. Para a advogada Sheila de Carvalho, que representou Bianca no caso, a decisão da Justiça tornou-se um marco para a liberdade de expressão do país.

“Constantemente assistimos Jair Bolsonaro atacar e tentar limitar o devido exercício da profissão de jornalistas. Suas lives semanais têm sido palco para ataques e produção de notícias falsas que cerceiam o direito ao acesso à informação, e essa decisão pode mudar essa lógica” – Sheila de Carvalho em entrevista ao UOL

O medo não é desconhecido

Ao longo de todo o processo, mesmo após a decisão judicial, Bianca enfrentou diversos medos pessoais. O medo não era pela absolvição do presidente, porque ela sabia que ele estava errado. Desde o momento em que seu nome foi proferido durante a live, a preocupação maior era a segurança da família, já que seu rosto se tornou imediatamente conhecido em todo o país.

“O meu medo era o meu vizinho bolsonarista um dia me dar um tiro enquanto eu molhava minhas plantas na varanda”

Bianca Santana

Logo após os primeiros ataques, ela excluiu sua conta no Facebook, removeu as fotos com os filhos no Instagram e passou a tomar muito cuidado com todos os locais que eles frequentavam. Bianca passou a conviver com uma sensação contínua de insegurança. Permanentemente, ela se sentia o alvo, assim como a grande maioria da população negra no Brasil, especialmente os jovens.

A violência nunca foi algo totalmente desconhecido na vida de Bianca. Aos 11 anos de idade, ela presenciou a morte do pai, vítima de suicídio. Também teve o primo – um jovem negro morador de um bairro na periferia da Zona Norte paulistana – assassinado pela polícia.

Os ataques do presidente e de seus apoiadores, inclusive com ameaças de morte, reacenderam os medos que Bianca tinha desde a infância.

“Por um lado, eu me sentia muito vulnerável: exposta nas redes, exposta no meu prédio. O medo não é desconhecido, mas reviver isso, depois de tantos anos acreditando que a gente estava numa sociedade diferente, foi algo pesado” – Bianca Santana

A preocupação é com elas

Bianca só entendeu que precisava de segurança fora da internet quando situações incomuns começaram a acontecer.

“Em um certo momento da pandemia, eu fui morar na Serra da Mantiqueira, num lugar super tranquilo, numa montanha. Um dia depois que o processo teve um novo caminho na Justiça, minha vizinha ouviu pessoas conversando no meu terreno à noite, uma coisa estranhíssima” – Bianca Santana

Essa história foi decisiva para a compreensão geral sobre os impactos que aquele processo estava acarretando em seu cotidiano.

“Eu não estava falando só de segurança digital, de reputação nas redes. Não que isso seja pouco, porque já é muito. Só que eu achei que o limite era esse. Eu não achei que eu ia ter que me preocupar com a minha segurança física. Eu tive bastante ajuda, tive apoio psicológico para conseguir voltar para o eixo e buscar formas de proteção não só externas, mas também cuidando de mim, com autocuidado” – Bianca Santana

O principal medo de Bianca era a maneira com que seus filhos iriam receber a notícia.

“Não é uma preocupação só do que pode acontecer, mas também de como eles vão receber aquela informação. Pode ser na escola, quando alguém faz um comentário, no prédio, quando alguém faz uma pergunta. As crianças têm acesso e não só mediadas por mim, porque elas vão para o mundo e ouvem coisas que não necessariamente tenho controle” – Bianca Santana

O episódio, inclusive, fez com que Bianca percebesse que a postura permanentemente bélica e hostil do presidente com jornalistas, artistas, cientistas e outros profissionais dedicados ao pensar e à intelectualidade, fazia com que crianças, de forma geral, tivessem medo de Bolsonaro.

“É muito comum, pelo menos onde eu circulo, as crianças terem medo do Bolsonaro. No caso dos meus filhos, não é só um medo minimamente distante, isso ganha uma concretude muito forte. ‘O Presidente da República acusou minha mãe de uma coisa. Ele sabe que a minha mãe existe. Ele vai fazer alguma coisa com ela’. Eu sou mãe de três crianças. Então quando acontece algo, a primeira coisa é sempre uma preocupação com elas” – Bianca Santana

Que informação é essa?

Formada em comunicação social pela Faculdade Cásper Líbero, mestre em Educação e doutora em Ciências da Informação pela Universidade de São Paulo, Bianca Santana foi, durante anos, professora universitária do curso de Jornalismo. Para ela, parte da falta de credibilidade da imprensa, que de alguma forma favoreceu o avanço da desinformação, é responsabilidade dos próprios veículos de comunicação que não raramente oferecem coberturas distorcidas ao seu público.

“Essa semana, vi uma manchete falando ‘Extrema direita cresce na França, apesar de não ter ganhado a eleição’. Eu olho essa manchete e penso ‘o que é isso?’. A notícia é ‘Macron ganha a eleição na França’. Por que a extrema direita é a protagonista dessa manchete? Que informação é essa? E é assim que o jornalismo hegemônico comercial opera no Brasil há mais de um século” – Bianca Santana

O olhar crítico sobre o jornalismo teve início na época em que ainda era adolescente. Moradora da Zona Norte de São Paulo, ela lia os jornais no transporte público e não se identificava com a realidade que era mostrada sobre o local em que vivia. As coberturas sobre a periferia eram focadas nos episódios de violência, tinham um caráter assistencialista e exploravam a pobreza. Desinformação, para ela, não está nem perto de ser uma novidade.

“É tão perverso o que acontece nessa máquina de ódio que produz desinformação com essa intenção, que a gente se vê no lugar de defender as empresas de comunicação, como se elas sempre produzissem informações de verdade” – Bianca Santana

Segundo o mais recente relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Jair Bolsonaro é, sozinho, responsável por quase 35% dos ataques individuais à imprensa – número que abrange casos de descredibilização da imprensa e agressões diretas.

Apesar da situação alarmante, Bianca acredita que muitos veículos de comunicação não protegem os próprios funcionários diante de eventuais ataques.

“Os jornalistas são obrigados, muitas vezes, a lerem editoriais que defendem um presidente que não só fere o Estado Democrático de Direito, como agride jornalistas o tempo todo. Isso é perverso” – Bianca Santana

Para ela, o caminho para a solução do problema é a educação popular de base. Desta maneira, o jornalismo retornaria ao local de influência da opinião pública, posicionamento político e a possibilidade de interpretação da realidade.

“Enquanto a gente não tiver uma perspectiva crítica, não vamos ter um jornalismo melhor, não vamos conseguir enfrentar fake news e não vamos ter uma esfera pública que se beneficia de uma discussão produtiva, porque a gente tem dificuldade em dialogar. A gente tem dificuldade com contraponto, com quem pensa diferente. Isso não é democracia. Isso não é informação. Isso não é jornalismo” – Bianca Santana

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