A chegada da nova ferramenta Comunidades no WhatsApp, no último dia 26 de janeiro, impacta diretamente o princípio número 1 da empresa: ser um serviço de mensageria privada. Com a possibilidade de aumento exponencial dos grupos, reunidos em comunidades, o aplicativo vai precisar de uma boa justificativa para continuar se auto definindo desta maneira, já que será possível uma disseminação de (des)informação em larga escala, tal como um veículo de comunicação.
Neste sentido, fica colocado em xeque o uso da criptografia de ponta a ponta, o mecanismo que preserva a conversa dos usuários e seus dados. A pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Renata Mielli, trouxe o tema à tona nas suas redes sociais:
Em entrevista ao *desinformante, Mielli expressou que é um debate polêmico, mas que precisa ser enfrentado. “Precisamos atualizar nosso debate sobre privacidade num ecossistema no qual serviços como o WhatsApp e o Telegram não possuem apenas a dimensão das comunicações interpessoais – estas sim precisam contar com máxima proteção. O mundo atual convive com novos desafios e dimensões de trocas de informação”, coloca.
Para ela, é necessário analisar se esses grupos com até 5 mil pessoas correspondem a uma comunicação privada ou de massa e se devem ter o mesmo nível de privacidade que as comunicações interpessoais. “Mesmo que ao final do debate, a comunidade acadêmica, o movimento de direitos digitais reafirma que sim, é preciso abrir essa discussão para que possamos compreender como enfrentar de forma estrutural o fenômeno da desinformação, que consensualmente passa por estes espaços”, conclui.
Em entrevista ao #panorama2023, no final do ano passado, o professor da UFMG e coordenador do projeto Eleições sem Fake, Fabrício Benevenuto, já alertava para o impacto que a nova ferramenta pode ter no espalhamento da desinformação.
“O grupo público funciona como uma espinha dorsal do espalhamento da desinformação. Aumentando o tamanho dos grupos e qualquer facilidade para viralização, essa espinha dorsal ganha força. Uma nova ferramenta que o WhatsApp vai implementar são as comunidades e, até onde eu entendi, as comunidades vão permitir que uma pessoa administre mais de um grupo de maneira mais fácil. Você vai poder administrar mais de um grupo e disparar uma mensagem para vários desses grupos ao mesmo tempo, administrar sua comunidade, seus vários grupos temáticos. Então vai facilitar esse trabalho hierárquico de espalhamento da desinformação”.
Heloísa Massaro, diretora do InternetLab, pontua uma questão que vai precisar ser resolvida: onde será traçada a linha da mensageria privada. Com as mudanças do WhatsApp, a diretora do Internetlab revela que essas linhas vão ficando mais tênues e mais difíceis de serem colocadas. Além disso, há uma grande questão de como garantir transparência para pesquisas acadêmicas, por exemplo, e a privacidade dos usuários. “Acho que algumas coisas são inegociáveis. A criptografia tem que ser inegociável e a minimização da coleta de dados também quando a gente pensa em regulação de plataformas”, defende Massaro.
“No aplicativo de mensagem tem uma questão de privacidade que tem que ser inegociável em alguma medida, eu não acho que o combate à desinformação justifica todo e qualquer tipo de medida e não justifica coletas massivas de dados de todos os usuários, ainda que sejam metadados”, conclui.
WhatsApp é utilizado em 99% dos celulares brasileiros
O WhatsApp está presente em 99% dos celulares das pessoas que usam internet no Brasil e, desde o último dia 26 de janeiro, esses milhões de usuários contam com uma nova ferramenta no aplicativo: as comunidades. Ventilada ainda no começo de 2022, a funcionalidade já despertava a preocupação de especialistas antes mesmo de entrar em vigor.
A plataforma fez um compromisso com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de só lançar o mecanismo que permite a reunião de milhares de pessoas em uma comunidade após as eleições de 2022. Temendo atos antidemocráticos após o pleito – como de fato aconteceu – o Ministério Público Federal recomendou o adiamento do lançamento para 2023, o que também foi atendido pela empresa.
Como funciona: A ferramenta permite a junção de vários grupos, permitindo a interação entre até 5 mil pessoas. As comunidades também permitem a figura de um administrador que poderá remover usuários, apagar mensagens e criar novos grupos.
“A preocupação era mais do que justificada. Se o WhatsApp tivesse liberado o Comunidades para o Brasil antes da eleição, temo que o resultado final poderia ter sido diferente”, comentou Renata Mielli.
Isso porque, de acordo com Mielli, há um amplo reconhecimento por parte de pesquisadores, ativistas de direitos digitais e da própria indústria de que um dos meios preferenciais de circulação da desinformação são os serviços de mensageria, principalmente o WhatsApp.
A pesquisadora explica que o aplicativo está presente em quase todos os celulares do país pela prática conhecida como zero rating, ou seja, “ele vem instalado por padrão e é ofertado pelas operadoras de telefonia como um serviços ‘gratuito’, isto é, seu uso não é descontado da franquia de dados do plano”, esclarece.
Heloísa Massaro destacou o papel específico que o WhatsApp preenche na vida dos brasileiros. A pesquisa “Os Vetores da Comunicação Política em Aplicativos de Mensagens: hábitos e percepções do brasileiro”, realizada pelo centro em parceria com a Rede de Conhecimento Social, revela que os usuários buscam usar o aplicativo para conversar principalmente em grupos de família, amigos e trabalho.
“O WhatsApp tem esse espaço do cotidiano. Em contrapartida, o Telegram é um lugar de busca de informação e de grupos de interesse. É quase um mecanismo de busca”, indica Massaro.
Para Mielli, está claro que o WhatsApp criou a funcionalidade ‘Comunidades’ por uma questão de competição dentro do mercado de serviços de mensageria e a capilaridade do aplicativo é um dos maiores fatores para a disseminação de desinformação de forma massiva.
“O Telegram possui uma outra arquitetura que permite grupos com milhares de pessoas. Contudo, não é pelo Telegram que essas mensagens [com desinformação] se disseminam de forma massiva, chegando ao que o pessoal chamou de ‘tio do zap’. Porque essa pessoa, lá da ponta, ela não acessa o Telegram, mas sim o WhatsApp”, explica a coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.