Pela primeira vez desde sua criação, o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) revela um cenário em que a prática do jornalismo é considerada “difícil” ou “muito grave” em metade dos países do mundo. Com pontuação média abaixo de 55 pontos entre os 180 países avaliados, a edição de 2025 revela uma deterioração generalizada das condições para o exercício da profissão, especialmente diante do avanço da desinformação, de ataques à imprensa e da concentração de poder político e econômico sobre os meios de comunicação.
Na contramão dessa tendência global negativa, o Brasil apresentou uma melhora significativa: subiu 47 posições em relação a 2022 e agora ocupa o 63º lugar no ranking. A retomada do diálogo entre instituições e imprensa durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, após anos de hostilidade sistemática sob Jair Bolsonaro, é apontada pela RSF como um fator-chave para essa recuperação.Ainda assim, os desafios permanecem expressivos, especialmente diante da violência estrutural contra jornalistas, da concentração de propriedade dos meios de comunicação e do impacto contínuo da desinformação, apontou o relatório.
Brasil mostra avanços institucionais, mas aprofundamento de tensões sociais
O cenário político brasileiro impacta diretamente a liberdade de imprensa. Segundo o relatório da RSF, a tentativa de golpe liderada por Jair Bolsonaro e seus apoiadores no fim de 2022 e início de 2023 marcou um dos períodos mais turbulentos da história recente do país, com a imprensa entre os principais alvos. Durante o mandato do ex-presidente, a retórica hostil ao jornalismo foi sistemática e contribuiu para fragilizar a relação entre instituições e meios de comunicação.
Com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e a consequente estabilização democrática, houve uma mudança de postura visível, aponta a RSF: “a chegada do governo Lula permitiu […] a normalização das relações entre os órgãos do Estado e a imprensa”. Destaca ainda o impacto concreto de medidas públicas em defesa do jornalismo e da transparência. Como resultado, o Brasil subiu no indicador político do ranking: da 55ª posição em 2024 para a 43ª em 2025.
Entretanto, os efeitos sociais do período anterior seguem evidentes. A retórica agressiva do governo Bolsonaro “aumentou a hostilidade e a desconfiança na sociedade” em relação à imprensa, segundo a RSF.
O país continua profundamente polarizado, e os ataques a jornalistas, especialmente nas redes sociais, ainda alimentam a violência física e simbólica contra profissionais da comunicação, é o que aponta o relatório. Embora o Brasil tenha avançado do 104º para o 86º lugar no indicador social, a RSF ressalta que a desinformação segue intoxicando o debate público e dificultando a reconstrução de um ambiente de respeito à imprensa.
Ao alcançar a 63ª colocação geral em 2025, o Brasil registra sua melhor posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa nos últimos dez anos. A trajetória do país ao longo da última década foi marcada por oscilações, com quedas sucessivas entre 2016 e 2021, período em que chegou à 111ª posição, uma das piores já registradas. A partir de 2022, no entanto, o país iniciou uma recuperação gradual que se intensificou em 2023, culminando no avanço expressivo de quase 20 posições entre 2024 e 2025.

Violência e impunidade desafiam a liberdade de imprensa
Embora o relatório reconheça que o Brasil dispõe de um arcabouço jurídico relativamente favorável ao exercício do jornalismo, o cenário prático ainda é muito desafiador. “O país carece de uma política robusta para proteger os jornalistas, uma prioridade quando se considera a história de violência contra a imprensa”, aponta a RSF.
Nos últimos dez anos, pelo menos 30 jornalistas foram assassinados no Brasil, que figura como o segundo país mais perigoso da América Latina para o exercício da profissão nesse período, perdendo apenas para o México (163ª). Blogueiros, radialistas e repórteres independentes que atuam em pequenas e médias cidades – sobretudo aqueles que investigam corrupção local – figuram como os mais vulneráveis, de acordo com o relatório.
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O aumento do assédio online também é mencionado, com impacto especialmente severo sobre mulheres jornalistas. Apesar de uma melhora no indicador de segurança (da 104ª para a 78ª posição), a violência estrutural segue como um entrave central para o avanço da liberdade de imprensa no Brasil.
Em uma análise global, o cenário de segurança é ainda mais alarmante:
“Em 42 países — que representam mais da metade da população mundial — a situação é considerada “muito grave”: a liberdade de imprensa está praticamente ausente e o exercício do jornalismo é extremamente perigoso”, indica o relatório.
A Palestina (163º) vive, segundo a RSF, um “massacre contra o jornalismo”: cerca de 200 profissionais de imprensa foram mortos nos últimos 18 meses, sendo pelo menos 43 durante o exercício da profissão.
A repressão à imprensa avança também na África Oriental, com Uganda (143º), Etiópia (145º) e Ruanda (146º) em situação “muito grave”, e em partes da Ásia. Hong Kong (140º) agora compartilha a mesma classificação crítica da China (178º), que figura entre os três últimos colocados do ranking ao lado da Coreia do Norte (179º) e da Eritreia (180º).
O cenário das Américas preocupa
Na edição 2025 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, 22 dos 28 países das Américas registraram queda no indicador econômico. Segundo a RSF, esse é reflexo de um modelo de financiamento cada vez mais frágil, onde a pressão financeira tem levado veículos a cederem a interesses políticos ou comerciais, enquanto os de menor porte, por falta de recursos, acabam limitados à reprodução de comunicados oficiais. A consequência direta, aponta a RSF, é a erosão do jornalismo crítico e independente, o que agrava as fissuras democráticas na região.
Nos Estados Unidos (57º), o atual mandato de Donald Trump tem intensificado os ataques à liberdade de imprensa, com a politização de instituições, marginalização de jornalistas e cortes no financiamento de veículos públicos como a USAGM, Agência dos Estados Unidos para a Mídia Global.
Em cenários ainda mais repressivos, como o da Nicarágua (172º), pior colocada na América Latina, a autocensura se tornou uma estratégia de sobrevivência diante da perseguição judicial e da censura sistemática, aponta o relatório. A Venezuela (160º) também segue entre os países com piores desempenhos na região, marcada por um ambiente de opressão à atividade jornalística.
Plataformas e monopólios em alta
O domínio das grandes plataformas digitais e a crescente concentração de propriedade dos meios de comunicação vêm minando de forma acelerada a sustentabilidade econômica do jornalismo em escala global. De acordo com o relatório da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), os gigantes tecnológicos, conhecidos como GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), continuam a capturar a maior parte da receita publicitária que antes sustentava a imprensa.
“Suas plataformas, em grande parte não regulamentadas, enfraquecem o modelo econômico dos meios de comunicação e amplificam os fenômenos de desinformação”, destaca a organização. Em 2024, os gastos com publicidade nas redes sociais alcançaram US$ 247,3 bilhões, um aumento de 14% em relação ao ano anterior.
Além da fuga de recursos, a concentração de propriedade é outro fator de alerta: em 46 países analisados, os meios de comunicação estão fortemente concentrados, em muitos casos, sob o controle direto do Estado. Esse quadro é apontado como comprometedor do pluralismo da informação e alimenta um ecossistema midiático vulnerável à manipulação política e econômica.
No Brasil, apesar da melhora no indicador econômico do ranking, com avanço da 86ª posição em 2024 para a 66ª em 2025, os desafios permanecem estruturais. O relatório aponta que, nos últimos anos, as transformações trazidas pelas plataformas digitais resultaram no fechamento de veículos de comunicação e no enfraquecimento da imprensa local e comunitária.
“As estações de rádio comunitárias sofrem um estrangulamento financeiro que põe em perigo a sua autonomia”, observa a RSF.
Enquanto grandes conglomerados buscam se reinventar por meio da diversificação de investimentos – contexto apontado como potencializador de riscos de conflito de interesses e limitação da independência editorial – os meios digitais independentes lutam para se manter viáveis em um ambiente cada vez mais hostil à pluralidade editorial.
Metodologia
Para medir o grau de liberdade de imprensa em 180 países e territórios, o ranking da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) se baseia em cinco indicadores principais: contexto político, arcabouço jurídico, contexto econômico, contexto sociocultural e segurança. A pontuação final de cada país é uma média dos 5 indicadores, podendo variar de 0 a 100, sendo que valores mais altos indicam ambientes mais favoráveis ao exercício do jornalismo.
O Brasil, por exemplo, tem uma nota global de 63,80, considerada “situação problemática” pelo ranking e indicada na cor laranja no mapa global da liberdade de imprensa.
A avaliação combina dados quantitativos sobre abusos cometidos contra jornalistas e meios de comunicação com uma análise qualitativa, realizada a partir de um questionário respondido por especialistas (jornalistas, acadêmicos e defensores de direitos humanos). O formulário está disponível em 25 idiomas e permite à RSF captar, com abrangência global, os principais desafios enfrentados pela imprensa em cada contexto.