Nesta quarta-feira (27), o Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar uma série de processos com temáticas relacionadas à internet. Em um deles, o que possui maior visibilidade e alcance, está em jogo a constitucionalidade ou não do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
O artigo 19 determina o chamado regime de responsabilidade dos provedores de aplicações de internet – categoria que inclui as plataformas digitais -, garantindo que as empresas não serão responsabilizadas por conteúdos publicados por usuários a não ser que haja um pedido judicial de remoção que não seja atendido.
O que diz o Artigo 19 do MCI?
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
O Marco Civil faz, no entanto, uma ressalva para o artigo 19. No caso de conteúdos chamados de “pornografia de vingança”, a plataforma deve retirar do ar no momento que for notificada pela vítima ou seu representante. Ou seja, a remoção deve ser feita ainda antes de uma decisão judicial e, caso não seja, a empresa pode ser penalizada.
O que diz o Artigo 21 do MCI?
Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
O caso em questão que será julgado pelo Supremo trata-se de um recurso extraordinário apresentado pelo Facebook contra o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre uma decisão que obriga a empresa a indenizar uma mulher por não derrubar um perfil falso que se passava por ela. A plataforma alega que não deveria ser penalizada sem uma determinação judicial prévia. Pela relevância do debate, o caso se tornou de repercussão geral, ou seja, sua decisão vai uniformizar a interpretação constitucional.
A organização Reglab elaborou uma cronologia do caso envolvendo o Facebook que aconteceu em 2014:
O que pode acontecer?
O julgamento que começa nesta quarta deve, portanto, determinar a responsabilidade da plataforma no caso específico e direcionar como deve ser o entendimento a partir de agora. No entanto, além do binômio constitucional/inconstitucional, há outras possibilidades de decisão pelos ministros da corte e três delas vêm sendo mais analisadas. Veja o que pode acontecer em cada caso:
- Se o artigo 19 for considerado constitucional: Nada muda, o regime de responsabilidade das plataformas segue o mesmo e elas apenas podem ser responsabilizadas se descumprirem ordem judicial de remoção – exceto no caso previsto no artigo 21 do MCI. No caso específico, o Facebook não teria obrigação de remover o perfil em questão sem uma ordem judicial.
- Se o artigo 19 for considerado inconstitucional: Nesse caso, as plataformas se tornariam responsáveis pelos conteúdos publicados pelos usuários, mudando o seu regime de responsabilidade. No caso específico, o Facebook deveria ser responsabilizado por não ter removido o perfil em questão.
- Se for adotada uma “interpretação conforme”: Nesse caso o STF pode considerar o artigo constitucional, desde que seja interpretado de uma forma específica, delimitando seu alcance e aplicação.
Além desses casos, o professor de direito e pesquisador no Instituto de Referência em Internet e Sociedade, Paulo Rená, explica que o STF pode decidir pela inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, ou seja, pode declarar o artigo inconstitucional, mas optar por não anular o texto, evitando um vácuo normativo, e também pela inconstitucionalidade sem redução de texto, ou seja, declarar inconstitucional em relação a situações específicas.
O que pensam os especialistas?
No ano passado, o tema chegou a ser pautado pelo STF, mas não foi à votação. No entanto, foram realizadas audiências públicas com atores interessados sobre a temática. Na época, em março de 2023, o entendimento pela constitucionalidade prevaleceu. Um levantamento do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) mapeou a fala dos participantes e constatou que 22 se posicionaram pela constitucionalidade, 17 adotaram uma postura neutra ou pela interpretação conforme e 8 defenderam a inconstitucionalidade.
Um ano depois, alguns atores aprimoram suas opiniões, como é o caso do diretor executivo do InternetLab, Francisco Brito Cruz. Em 2023, Cruz defendeu a constitucionalidade, mas em recente artigo publicado na Folha de S. Paulo, o especialista reconsidera o tema. “No passado, o caminho podia ser afirmar a constitucionalidade do Marco Civil como escolha possível do legislador, mas a vida digital evoluiu e isso não basta”, argumenta.
“Um caminho equilibrado para o regime de responsabilidade do Marco Civil seria mantê-lo em termos gerais, mas indicar que algumas exceções a ele devem ser extraídas de uma leitura sua conforme a Constituição”, continua Cruz, destacando a interpretação conforme como uma decisão mais adequada. Uma das exceções, de acordo com o autor, deveria ser os conteúdos impulsionados na plataforma, justamente porque são publicações analisadas previamente pelas empresas.
Os diretores do ITS Rio, que advogaram pela constitucionalidade em 2023, também publicaram um artigo na Folha de S. Paulo em que destacam alguns pontos para o caso de uma decisão pela interpretação conforme. Nessa situação, defendem, STF deveria se balizar pelo ICCPR (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) para a criação de critérios para que envolvam as exceções. O ICCPR coloca, por exemplo, como limite da liberdade de expressão discursos que defendem o ódio nacional, que incite a guerra, que prejudique a saúde pública e que represente uma ameaça direta e imediata à ordem pública.
Já o pesquisador Paulo Rená se coloca crítico à possibilidade do STF inovar normativamente e substituir o Artigo 19 por um dever de cuidado, considerando problemático estabelecer critérios para diferentes situações. No entanto, ele considera preferível essa intervenção do STF à simples declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 sem a criação de uma nova regra, pois isso deixaria o ordenamento jurídico sem uma norma específica, o que pode gerar insegurança jurídica.
Além disso, Rená destaca o contexto por trás desse julgamento, destacando a inação do Congresso em legislar sobre o tema – o PL 2630 que tratava sobre regulação de plataformas está parado na Câmara dos Deputados e o GT criado em junho nunca se reuniu – e os recentes ataques contra o sistema democrático. “Acho que o cenário tem sido lido como demandando uma atuação mais firme e mais proativa, mais avançada por parte do Supremo Tribunal Federal”, analisa.
Opiniões mais incisivas sobre a constitucionalidade ou não do artigo também foram publicadas pela imprensa brasileira, atores que também são interessados na decisão do STF. Em editorial, o jornal Estadão defendeu a manutenção do texto afirmando que não há no artigo 19 violações da proteção do consumidor ou dos direitos da honra ou da proteção humana que justifiquem a sua inconstitucionalidade. Considerar a lei vigente como insuficiente, afirma o jornal, seria “terceirizar a censura”: “O resultado seria um efeito inibitório em que as redes, por precaução, removeriam massivamente quaisquer conteúdos minimamente controversos para evitar riscos de punição”.
Já O Globo publicou um editorial afirmando que o STF deve invalidar o artigo 19: “Deixar tudo como está não é uma opção. O Brasil é exemplo das consequências negativas da falta de um sistema adequado de atribuição de responsabilidades. A assimetria de responsabilidade que cabe a cidadãos ou organizações nos mundos on e off-line precisa ser corrigida. Na ausência da iniciativa do Congresso, onde o Projeto de Lei das Redes Sociais continua parado, um primeiro passo é o Supremo invalidar o artigo 19 do Marco Civil.”
Outros casos pautados pelo STF
Além do recurso extraordinário 1037396, que trata do caso do Facebook, o STF pautou outros seis casos que envolvem temas ligados ao digital e que podem ter repercussões importantes para o cenário. A segunda ação pautada (recurso extraordinário 1057258) também discute o regime de responsabilidade e é reconhecida como de repercussão geral. No entanto, não discute necessariamente o artigo 19 do MCI por ser um caso anterior à sua aprovação em 2014.
O recurso aborda o caso de uma professora que alega ter sido ofendida e difamada em uma comunidade do Orkut que foi criada para esse fim com o nome “eu odeio a —”. A professora solicitou que a plataforma – que foi comprada pelo Google – retirasse a comunidade do ar, mas o pedido foi negado. Assim, a mulher entrou na justiça pedindo a remoção e indenização por danos morais.
O pesquisador Paulo Rená destaca que, mesmo que o caso do Orkut seja anterior ao Marco Civil e, portanto, não tenha impacto direto na aplicação do artigo 19, o STF pode utilizar a análise deste caso para estabelecer precedentes e definir princípios a serem aplicados em casos futuros que envolvam o artigo 19. Ele acredita que, pela proximidade das temáticas, pode ser que os ministros apresentem um voto único para os dois processos.
Além desse processo, estão na pauta duas ações – uma de 2016 e outra de 2017 – que tratam da constitucionalidade de ações que suspenderam o WhatsApp em ocasiões anteriores. Outra ação analisa a constitucionalidade dos relatórios produzidos pelo governo Bolsonaro a partir do monitoramento de parlamentares e jornalistas nas redes sociais. Por fim, os últimos dois casos levam ao STF o debate sobre a possibilidade de uma autoridade pública – em questão o ex-presidente Jair Bolsonaro – bloquear usuários nas suas contas oficiais. Veja mais sobre os outros casos aqui.