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acervo pessoal

maio 8, 2023 | pontos de vista

O “dever de cuidado” seria um descuido indevido

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Em 6 de abril, O Desinformante anunciou, em um breve fio no Twitter, a oferta de contexto e didatismo para explicar o “dever de cuidado” no âmbito do debate público sobre regulação das plataformas digitais. De uma resposta sobre inconsistência e teoria da responsabilidade civil, emergiu esta oportunidade para explicar a impropriedade desse termo, do ponto de vista do direito brasileiro. A importação dessa ideia desnecessária evidencia o descuido indevido com as criativas e pioneiras conquistas de direitos já alcançadas no Brasil.

Mobilizados, portanto, pelo desafio de levar a sério a missão de “O Desinformante”, no tocante à qualificação dos conteúdos, este texto apresenta alguns aspectos normativos que permitem concluir: do ponto de vista da legislação brasileira vigente, e das ferramentas já disponíveis para o enfrentamento à desinformação, ao discurso de ódio e outras formas de desordem informacional, não faz sentido criar um “dever de cuidado”. 

O “dever de cuidado” não tem base legal no direito brasileiro e, ainda que essa ideia venha a ser inserida na Lei Brasileira de Liberdade, Transparência e Responsabilidade, ou PL 2630/2020, essa proposta legislativa precisa considerar as disposições já existentes no direito pátrio. Ainda que para afirmar sua importância, um novo capítulo da nossa história normativa não pode simplesmente fingir que estamos em uma terra sem lei e ignorar o que já se legislou sobre o tema, em especial, o Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei Federal 8.078/1990) e o Marco Civil da Internet – MCI (Lei Federal nº 12.965/2014). Ambas as normas são globalmente pioneiras e falam em segurança, não em cuidado.

Dever de segurança está previsto no Código de Defesa do Consumidor

Nesse particular, ainda que fosse cabível buscar a criação de um “dever de cuidado”, seria necessário estabelecer sua relação com o instituto jurídico do “dever de segurança”, repita-se, previsto desde 1990 pelo CDC (quase trinta e três anos de vigência), e desde 2014 pelo MCI (quase nove anos). Talvez o estudo só de literatura jurídica em outros idiomas tenha entortado a boca do governo federal atual em direção a estrangeirismos desse tipo, o que nem combina com o cenário de renovação das esperanças.

Nos debates sobre o mencionado projeto de lei, também conhecido como “PL das Fake News”, a assimilação da noção jurídica de “dever de cuidado” tem papel central em algumas das principais modificações que o governo federal sugeriu ao deputado Orlando Silva. A despeito das recentes modificações de texto, e de eventuais futuras alterações, a atual administração federal – notadamente Ministério da Justiça e Secretaria de Comunicação – puxa esforços aparentemente excessivos, mesmo diante da importância óbvia do tema.

As pastas parecem um insistente dono de cachorro que – talvez pelo cansaço, talvez pela sabedoria fruto da experiência – tenha desenvolvido resistência ou receio em aceitar o passeio. Talvez o animal tenha desenvolvido a percepção de que o destino inevitável será voltar pro mesmo lugar. Mas o movimento vale a pena, ainda que o caminho pareça não ter sentido. A seguir, explicam-se a conceituação e a metáfora. 

A questão se relaciona com a disciplina ampla da responsabilidade jurídica, da qual fazem parte a responsabilidade civil, a responsabilidade penal, a responsabilidade administrativa, a responsabilidade tributária etc.. Entender tal ideia, ainda que em fase de deliberação legislativa (“de lege ferenda”), demanda dedução a partir do texto sugerido pela proposição do governo federal, ainda carente de uma exposição de motivos formal. Detalhe importante: tecnicamente, vale registrar que sequer houve apresentação pública formal de tal proposta governamental. O que houve foi um vazamento informal, situação (demasiada e infelizmente) representativa da não valorização da participação social como instrumento de debate durante a construção das propostas.

Aliás, o desrespeito procedimental e democrático à estratégia que balizou a deliberação e a aprovação do MCI – um paradigma mundial para o debate de iniciativas normativas entre Estado, Mercado e Sociedade Civil, e que gestado e desenvolvido no âmbito do mesmo Ministério da Justiça que hoje ouve o ministro repetidamente reprimir a Internet como se fosse uma suposta “Terra sem lei”. A perda da memória institucional decepciona.

Em todo caso, desde a “ideia vazada”, hoje incorporada pelo texto do relator, deputado Orlando Silva, identifica-se no dever de cuidado a previsão de que, em determinadas circunstâncias, uma plataforma digital teria o dever de agir com cuidado, para evitar que o conteúdo publicado por pessoas que usam seus serviços pudesse causar danos a outras pessoas. Tal noção (em fase de elaboração e debate), portanto, parece se relacionar e/ou aproximar, nessa medida, com o instituto jurídico do  “dever de segurança” – conceito doutrinário que tem base legal do Código de Defesa do Consumidor (CDC), na parte em que regula o risco decorrente de serviços ou produtos. O dever de segurança, previsto expressamente pelo CDC, não só pode, como, com base na jurisprudência consolidada dos tribunais brasileiros, deve, via de regra, ser aplicado a atividades econômicas de grandes empresas, a profissões liberais como medicina, engenharia, odontologia e advocacia, ou mesmo em situações cotidianas, como dirigir um carro ou caminhar na rua.

No entanto, apesar de sua importância no mercado de direito, a tentativa de enunciação de uma definição de “dever de cuidado” nos parece, à primeira vista, inconsistente. Isso se dá, inicialmente, por dois motivos: a) a subjetividade da medida de cuidado exigida; e b) pela falta de previsibilidade das consequências de determinada conduta, que tornam difícil definir a medida de cuidado necessária em cada situação.

A subjetividade do conceito é um dos principais motivos da sua inconsistência. A obrigação de se comportar com cuidado depende de uma série de fatores, como a experiência e habilidade da pessoa e/ou instituição (entidade responsável pela moderação de conteúdos), a situação concreta da comunicação implementada e as circunstâncias envolvidas na dimensão contextual própria do processo comunicativo em questão. 

Trocando em miúdos, para além dos truísmos na esquina, a comunicação, não custa rememorar, corresponde a uma das mais complexas e sofisticadas relações humanas. Nem sempre, por exemplo, a literalidade de uma expressão linguística é suficiente para especificar o seu sentido ou os seus múltiplos usos. Apenas para que tenhamos ilustrações, o uso de figuras de linguagem tal como a metonímia, a metáfora, ou ainda o emprego da linguagem em situação figurativa e/ou performativa (como é o caso da ironia, por exemplo), pode gerar mal-entendidos. O problema, em última instância, portanto, é o de que essas variáveis, além de serem subjetivas, variam semântica e operacionalmente também em razão de cada uso peculiar. Como consequência pragmática da assunção dessa premissa comunicacional, existe uma grande margem de interpretação de expressões linguísticas.

Além disso, a falta de previsibilidade das consequências de determinada conduta também contribui para a inconsistência dessa noção imprecisa que se pretende implementar na atual redação do PL. A determinação da medida de cuidado exigida em cada caso depende das possíveis consequências de determinado comportamento. Porém, muitas vezes é impossível prever com exatidão quais serão as consequências de uma ação ou omissão.

A imprudência da coerência das novas leis com a legislação vigente é outro problema que afeta a tentativa de alusão à juridicidade de um suposto “dever de cuidado”. As novas leis muitas vezes buscam atualizar e trazer maior precisão às normas, mas podem acabar gerando ainda mais incoerência no sistema jurídico. Isso porque as obrigações de cumprir um dever jurídico estão, normativa e operacionalmente, na primeira ordem da interpretação técnico-jurídica. Na segunda ordem desse silogismo jurídico-normativo, está a responsabilidade pelo descumprimento de obrigações jurídicas. Ou seja, se a legislação estabelece um dever de cuidado ou obrigações que devem ser cumpridas, é importante que tal tentativa de inovação normativa seja pensada considerando a coerência com outros dispositivos da legislação vigente. É aquilo que a jurisprudência consagrada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem definido enquanto “diálogo de fontes”.

Desafio normativo e institucional para o direito

Para o momento, concluímos ser a proposta normativa de inserir o “dever de cuidado” em nosso ordenamento jurídico um desafio normativo e institucional para o direito, campo acostumado à constante reflexão e adaptação de termos e institutos. É importante que haja sempre uma análise abrangente (contextual e abstrata) de cada caso concreto, levando em conta não só os critérios subjetivos, mas também as previsibilidades e a coerência das normas jurídicas em um todo. É o que a teoria constitucional e normativa do direito há pouco mais de um século denomina de “determinação estrutural do direito”. Dessa forma, o direito poderá evoluir e se ajustar às demandas da sociedade contemporânea, tornando-se mais justo e eficaz. Mas esse esforço só fica mais trabalhoso quando a criação legislativa se despreocupa com a coesão e a coerência, reinventando a roda a cada novo caminho.

Em tempos tão velozes e vorazes, antes de se propor a “(re)invenção da roda”, faz sentido levantar o contexto normativo que serve de contexto e ambiência para tal proposição legislativa. Essa tarefa – uma espécie de “dever-de-casa” a quem pretende propor modificações legais – parece ter sido desrespeitada, nessa situação legislativa sob análise. A impressão é a de que a atual redação do PL é um tanto quanto descuidada não somente com a cautela que a relevância do tema suscita, mas, sobretudo, pela falta de deferência quanto aos institutos jurídicos e práticas institucionais já em funcionamento no direito brasileiro. 

Ao tentar fixar, arbitrária (pois, sem debate) e açodadamente (já que sem diálogo com as demais fontes normativas e interlocutores da sociedade e do mercado), novas noções, o PL, na atual redação “vazada”, assume o risco, a um só tempo, de ser imprudente (o tema exige sistematização e reflexão – e não urgência e atropelamento do debate democrático), negligente (propõe-se a “criação” de uma suposta ideia nova, sem se levar a sério os institutos e práticas institucionais já em vigor no direito brasileiro) e com alguma dose de imperícia (a noção de “dever de cuidado”, ainda que alegadamente empregada no direito comparado – precisa ser adequadamente “traduzida” e compatibilizada com as noções jurídicas e jurisprudenciais que regem o tema no Brasil).

Assinalamos, por fim, o descuido indevido da tentativa de implantação, a fórceps, dessa frágil noção. O recado está dado: o perigo? Tá certo que não somos mais jovens diante de um sinal fechado, mas como alerta a canção, a forma de condução dos debates legislativos do PL 2630/2020 indicam haver sinais, fortes sinais, que demandam “cuidado, Meu Bem, há perigo na esquina!”.

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Texto de autoria de Paulo Rená da Silva Santarém com a colaboração de Daniel A. Vila-Nova G.

Paulo Rená é Co-Diretor Executivo na ONG Aqualtune Lab: Direito, Raça e Tecnologia. Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília. Especializado em Direito Constitucional do Trabalho (UnB/TST). Ex-Professor das disciplinas "Direito, Inovação e Tecnologia" e "Responsabilidade civil" na Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas no Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pesquisador. Servidor Público Federal, entre 2009 e 2010 foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

Daniel A. Vila-Nova G. é jurista com atuação na prática advocatícia de diversas áreas do Direito Público. Diretor Jurídico na ONG Ibidem (Instituto Beta - Internet & Democracia). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Voluntário na Disciplina “Direito Administrativo 1” na Faculdade de Direito da UnB (FD/UnB). Professor de “Introdução ao Estudo do Direito” no Curso de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa (IDP). Pesquisador. Árbitro. Servidor Público Federal, junto ao Supremo Tribunal Federal, entre 2002 e 20017.

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