Embora tenham representado apenas 44,4% das candidaturas monitoradas nas capitais brasileiras, mulheres foram alvo de 51,1% dos comentários ofensivos publicados durante debates eleitorais transmitidos ao vivo no YouTube em 2024. O dado faz parte da nova edição do MonitorA, observatório que documenta a permanência e o refinamento da violência política de gênero nas eleições municipais. Marcados por misoginia, transfobia, etarismo e tentativas de deslegitimação simbólica, os ataques se concentram nas identidades das candidatas e não em suas propostas.
Na edição deste ano – marcada por apagões de dados e mudanças nas políticas de acesso a dados das plataformas – o MonitorA analisou um conjunto robusto de interações online durante o período eleitoral. No YouTube, foram examinados mais de 1,3 milhão de comentários publicados entre setembro e outubro de 2024, dos quais 136.342 continham ao menos um termo potencialmente ofensivo.
O levantamento também se estendeu ao Telegram, com o monitoramento de 2.500 grupos e canais, onde foram identificadas 574 mensagens, 53 imagens e 29 vídeos com conteúdo ofensivo contra candidaturas femininas. Já no Bluesky, a equipe analisou 1.206 comentários que continham termos do léxico do observatório, com respostas a postagens de 27 candidatas e candidatos.
Catharina Vilela, coordenadora de pesquisa no Internet Lab e uma das responsáveis pelo estudo, destaca que o enfrentamento da violência de gênero, incluindo suas expressões na forma de desinformação generificada e violência política, depende da sistematização de dados. “Enfrentar a violência de gênero de forma ampla passa, necessariamente, pela possibilidade de entender como ela se manifesta, circula e é moderada pelas plataformas”, afirma.
Desde 2020, o MonitorA tem documentado que esses ataques não se dirigem às propostas ou ações políticas das candidatas, mas à sua identidade. A edição deste ano é uma realização do InternetLab e do Instituto AzMina, em parceria com o Núcleo Jornalismo e o Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA.
Narrativas de deslegitimação de candidatas no YouTube
A análise conduzida pelo MonitorA identificou narrativas recorrentes na tentativa de deslegitimar candidatas e colocar em cheque a sua autonomia política. O relatório aponta que candidatas são enquadradas como “versões femininas de”, “esposas de” ou mesmo “capachos” de figuras masculinas.
Um dos exemplos citados foi a recorrência de comentários como ““Adriane você è Dona de casa capacho do maridoooooo”, direcionado à prefeita de Campo Grande, Adriane Lopes (PP-MS).
Entre os alvos mais constantes da violência, estão as candidatas trans e travestis. O MonitorA registrou que, em um único debate com participação de Duda Salabert (PDT-MG), 84,6% dos comentários ofensivos tinham como foco sua identidade de gênero, um percentual alarmante que indica que a transfobia é utilizada como estratégia de deslegitimação.
A aparência física também foi apontada como um recurso que é instrumentalizado para a desqualificação política. A deputada e candidata Tabata Amaral (PSB-SP) foi alvo de comentários como “um pitel… mas ela fica mais bonita calada”. A sexualização de candidatas, mesmo quando disfarçada de elogio, visa silenciá-las ou reduzir sua presença a um corpo, aponta a análise.
A idade também é apontada pelo MonitorA como um marcador de exclusão: “jovens demais para serem levadas a sério, velhas demais para exercer plenamente suas funções”. É uma narrativa que – segundo o relatório – reforça estereótipos sobre competência e autoridade, negando às mulheres o direito de serem julgadas por suas propostas ou experiências.
Narrativas que associam mulheres à loucura ou à histeria também persistem como uma forma de silenciamento simbólico. Durante as transmissões monitoradas, foi identificado o uso banal de termos como “descontrolada”, “louca” ou “histérica”, direcionados a candidatas com perfis variados.
Para Ana Carolina Araújo, gestora de programas e projetos no Instituto AzMina e uma das responsáveis pela condução do estudo, os dados confirmam a permanência de práticas já identificadas em edições anteriores do MonitorA. “Vimos a continuidade de padrões que já conhecíamos: misoginia, transfobia e a tentativa constante de desacreditar a capacidade intelectual e política das mulheres”, afirmou.
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Minoria nas candidaturas, mas maioria alvo de ataques
Os dados sobre a violência política de gênero revelam um cenário grave em cidades como Belo Horizonte, onde 91,7% das mensagens ofensivas tinham candidatas como alvo. Em Natal, esse percentual chegou a 91,3%, e em Porto Alegre, a 85,9%.
O termo “mulher” apareceu em 1.251 comentários ofensivos, frequentemente acompanhado de palavras como “vergonha” (701 vezes), “piada” (268) e “lixo” (197).
Em São Paulo, a deputada federal e candidata à prefeitura Tabata Amaral (PSB) concentrou quase metade de todos os comentários ofensivos analisados em um dos debates. O foco das agressões não foram suas propostas, mas sua identidade enquanto mulher, indica a análise.
Comentários como “Vai pro OnlyFans, mulher não presta pra política”, direcionado a Tabata, são trazidos no relatório para exemplificar as reiteradas tentativas de expulsar simbolicamente as candidatas do espaço público, sexualizando e deslegitimando suas presenças.
No Telegram, as candidatas Tabata Amaral (PSB-SP) e Maria do Rosário (PT-RS) são os principais alvos. Os compartilhamentos dos conteúdos danosos em diferentes chats ampliam o alcance e reforçam a deslegitimação das candidatas, evidenciando a dinâmica coordenada de disseminação, aponta o relatório. A misoginia e a polarização ideológica são apontadas no estudo como principais motivadores de boa parte desses conteúdos.
Já no Bluesky, a análise revelou que 27% dos comentários ofensivos tinham como alvo candidatas mulheres, enquanto 15% miravam candidatos homens. No total, 33,2% dos comentários analisados configuravam algum tipo de ofensa, com destaque para os ataques de cunho moral e de descrédito intelectual, que representaram 18,16% da amostra. Entre os termos mais recorrentes estavam expressões como “burra”, “canalha”, “gostosa” e “vadia”, evidenciando a recorrência de insultos misóginos e sexualizados.
Dados do Observatório de IA nas Eleições indicam que a candidata Tabata Amaral (PSB) também foi alvo de ao menos dois episódios distintos envolvendo o uso de deepnudes. Em setembro, ela acionou a Justiça após ter seu rosto inserido, por meio de inteligência artificial, em imagens de uma atriz de conteúdo adulto. Semanas depois, voltou a ser vítima da mesma prática, desta vez ao lado da também candidata Marina Helena (Novo).
Léxico ampliado
Uma das inovações da edição 2024 do MonitorA foi a parceria com a linguista Carolina González, que contribuiu para o aprimoramento técnico do léxico utilizado na identificação de manifestações de violência política de gênero. O número de termos e expressões ofensivas monitoradas passou de 183 em 2022 para 256 em 2024. Mais do que novas palavras, essa ampliação abrangeu metáforas, ironias, apelidos pejorativos e adjetivações carregadas de sentidos discriminatórios, formas de agressão que muitas vezes operam por ambiguidade ou duplo sentido.
“A nossa parceria permitiu a incorporação de evidências empíricas extraídas diretamente dos comentários publicados nas redes sociais das candidatas, somadas a um olhar técnico sobre as formas como a linguagem estava sendo mobilizada nesse contexto”, explica Catharina Vilela, coordenadora de pesquisa no Internet Lab.
A análise contextual da linguagem também revelou desafios para a atuação das plataformas. “A experiência expõe os limites das tecnologias de moderação automatizada, que, embora úteis em determinados contextos, não dão conta da complexidade semântica e simbólica das manifestações de violência política de gênero”, pontua Catharina.
Caminhos futuros
O relatório do MonitorA apresenta um conjunto de treze recomendações para diferentes atores envolvidos no processo eleitoral. Para as plataformas e provedores de aplicação da internet, por exemplo, está o pedido pela disponibilização de ferramentas específicas que ajudem as candidaturas a se protegerem das dinâmicas de violência política online.
Para Catharina Vilena, esse tipo de medida precisa deixar de ser opcional. “As plataformas precisam ser legal e politicamente compelidas a desenvolver ferramentas e políticas específicas para esse enfrentamento, idealmente em diálogo com a sociedade civil, a academia e o Estado, atores que podem oferecer insumos valiosos sobre contextos locais e as múltiplas formas de discriminação que se manifestam de maneira interseccional”, afirma a pesquisadora.
No âmbito legislativo, o relatório aponta para o aprimoramento das leis, com a inclusão de medidas protetivas para pré-candidatas e assessoras, além do fortalecimento da perspectiva interseccional na legislação, garantindo uma proteção mais ampla e efetiva.O Judiciário e o Ministério Público também receberam recomendações para atuarem com mais rigor e sensibilidade diante dos casos de violência política, assim como os partidos políticos, que precisam adotar práticas internas para prevenção e combate a esse tipo de agressão. Por fim, a sociedade civil é chamada a ampliar seu papel de monitoramento e apoio às candidaturas vulnerabilizadas e o fortalecimento de redes nacionais e internacionais para o enfrentamento à violência política de gênero.