2024 vem sendo chamado de “o ano da democracia”. Ao longo deste ano, mais de 65 países de todos os continentes vão às urnas eleger seus representantes. O número, que flutua um pouco em razão de eleições remarcadas ou ainda não confirmadas, é grande, mas o número de idiomas que se entrelaçam nesses pleitos pode ser ainda maior. E a pergunta que muitos fazem é se as plataformas fizeram investimentos na moderação de conteúdo humano fora da língua inglesa.
Um dos grandes mistérios alimentados pela opacidade das plataformas digitais é o número de moderadores de conteúdo delas. Ou seja, quantas pessoas atuam, junto com os sistemas de inteligência artificial, analisando as denúncias e os potenciais abusos cometidos nas redes sociais. Esse mistério começou, aos poucos, a ser desvendado com a entrada em vigor do Digital Services Act, a Lei de Serviços Digitais da União Europeia.
Entre as diversas obrigações que a robusta legislação europeia coloca para as plataformas está a publicação de relatórios de transparência com dados sobre a moderação de conteúdo no bloco. Os dados não se referem ao mundo todo, mas, mesmo entre os países europeus, é possível ver uma assimetria e compreender quais são as prioridades das grandes plataformas.
“Os serviços Google (exceto Google Maps), Facebook, Instagram e TikTok abrangem todas as línguas dos Estados-Membros da UE, mas todos parecem não ter moderadores de conteúdos com conhecimentos de irlandês e maltês. As outras grandes plataformas centram-se apenas em algumas das principais línguas da UE, negligenciando as restantes, o que pode sugerir um potencial fracasso do chamado dever de cuidado”, explica o relatório do Council for Media Services da Eslováquia, que analisa os relatórios de transparência divulgados pelas plataformas em outubro de 2023.
O TikTok, por exemplo, não possui moderadores em irlandês nem em maltês, de acordo com os dados divulgados, além de apresentar um número bem pequeno de moderadores que falam estoniano, letoniano, lituniano e croata. Assim como as plataformas da Meta, a prioridade linguística da rede de vídeos curtos é o inglês, alemão, francês e espanhol.
No seu relatório de transparência, o Instagram diz que os seus revisores trabalham nas línguas oficiais da UE. Para línguas que são amplamente faladas fora do bloco, “existem revisores de conteúdo adicionais que analisam relatórios de países terceiros”. Ou seja, os 58 revisores de português que constam na prestação de contas do Instagram não são, necessariamente, profissionais que atuam em países fora da União Europeia, como o Brasil.
Já o relatório do X, ex-Twitter, mostra que a plataforma não possui moderadores para 11 das 24 línguas oficiais da União Europeia. “No caso do X, idiomas como croata ou holandês só teriam 1 revisor humano de moderação de conteúdo. O que é uma coisa absolutamente desproporcional se você pensa que essa pessoa tem que atender um país inteiro”, coloca Bruna dos Santos, gerente de campanhas globais da organização para proteção da democracia e direitos humanos Digital Action.
“Existe esse diagnóstico inicial de que as coisas precisam melhorar e muito. Um de fato não é o número adequado, mas fico pensando se 20 ou 30 também são números que conseguem responder a uma demanda que vai crescer muito mais aqui no continente europeu, considerando que a gente tem eleições neste semestre”, acrescenta Santos, que vive na Alemanha.
A gerente de campanhas globais acrescenta que as plataformas estão começando a anunciar medidas para melhorar este cenário diante da proximidade das eleições. Como o fato de o TikTok ter anunciado um reforço para as eleições da UE com a criação de uma central de eleições que conta, entre outras coisas, com a parceria da plataforma com nove organizações de fact-checking no continente, que cobrem 18 línguas oficiais.
Situação é pior no Sul Global
Se na Europa a situação não é ideal, nos outros países o contexto pode ser ainda pior, inclusive pela ausência de informações elementares, como número de usuários e de moderadores humanos. “Elas [línguas marginalizadas e minoritárias] sofrem ainda mais com com a falta de contextualização da moderação de conteúdo que as plataformas podem oferecer hoje em dia e isso tudo fica tudo pior com esse contexto de layoffs (demissões em massa de funcionários)”, afirma Bruna dos Santos.
“A gente entende que o mundo tem de fato uma diversidade linguística muito grande e que talvez não seja necessariamente realista promover termos de uso da comunidade ou políticas internas em todas elas, mas ao mesmo tempo não é justo que em algumas dessas linguagens ou localidades os usuários estejam mais suscetíveis a assistir ou ter acesso a conteúdos que são problemáticos, que acirram ainda mais as divisões da sociedade e que promovem conteúdo de ódio por conta da falta de moderação”, complementa a representante do Digital Action ao lembrar o genocídio no Mianmar.
Investigadores de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) concluíram que o discurso de ódio no Facebook desempenhou um papel fundamental no fomento da violência em Mianmar na década passada. A empresa admitiu que não conseguiu evitar que sua plataforma fosse usada para “incitar a violência”. Um dos motivos apontados pela ONU foi a falta de moderadores de conteúdo que falassem as línguas locais.
A campanha “Ano da Democracia”, lançada pelo Digital Action, demanda para as plataformas, entre outros aspectos, que elas tenham equipes de moderação de conteúdos maiores e mais linguística e culturalmente competentes para compensar o fraco desempenho algorítmico fora do inglês.
Além das línguas marginalizadas, que não são prioridade para as redes sociais, existe um problema ainda maior que são as línguas minoritárias, ou seja, outros idiomas que integram culturas e costumes, mas não são a língua oficial de um país, como o tupi guarani no Brasil. Em outros países, como Indonésia, Paquistão e Índia, a diversidade linguística é muito alta, com diversos dialetos que tornam ainda mais difícil a aplicação da moderação de conteúdo de forma adequada.
“Enquanto a gente não tiver uma abordagem para moderação de conteúdo que seja capaz de considerar a crise de equidade global – essa diferença nos investimentos entre diferentes partes do mundo – a gente não vai também conseguir resolver esses problemas porque quando a gente fala de contextos tão específicos quanto Taiwan, Etiópia, Mianmar, ou até enfim partes do Brasil que podem não falar língua portuguesa, a gente também está falando em investimentos que sejam proporcionais aos danos causados, investimentos que permitam acima de tudo é remediar os problemas”, avalia Santos.
E a língua portuguesa?
De acordo com o estudo sobre a presença da língua portuguesa na internet, realizado pelo Observatório da Diversidade Linguística e Cultural na Internet e apresentado no 1º Fórum Lusófono de Governança da Internet no ano passado, o português, que é a língua oficial de dez países, representa 3,35% dos conteúdos da internet, ocupando o 6o lugar em um ranking mundial. Além disso, representa 3,1% dos internautas do mundo todo, em uma proporção maior do que a própria população falante.
No entanto, pela falta de dados disponibilizados pelas plataformas, não há como saber se o número de moderadores de conteúdo acompanha essa métrica. O PL 2630 ou Lei das Fake News, que aguarda votação no Congresso Nacional, prevê que as plataformas digitais deverão fornecer relatórios de transparência trimestrais com números totais de usuários brasileiros e localizados no país, além de de números sobre a moderação de conteúdo e contas realizadas e a metodologia utilizada.