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Gustavo Moreno/STF

jun 6, 2025 | Destaques, geral, Notícias

Entenda o voto de André Mendonça sobre a constitucionalidade do Artigo 19

Gustavo Moreno/STF
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“No que concerne à remoção de conteúdo, entendo que, à luz das balizas constitucionalmente estabelecidas, o dispositivo é, em tese, constitucional.” A declaração do ministro André Mendonça encerrou, na sessão desta quinta-feira (5), um dos votos mais aguardados no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI), dispositivo que estabelece as regras para a responsabilização civil de plataformas digitais por conteúdos publicados por terceiros.

Depois de duas tardes dedicadas à leitura de mais de cem páginas de voto, em que percorreu fundamentos jurídicos nacionais e internacionais, Mendonça apresentou uma posição que diverge das manifestações já proferidas pelos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Em sua avaliação, as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente se descumprirem ordens judiciais de remoção de conteúdo.

O julgamento havia sido interrompido em dezembro, após pedido de vista de André Mendonça, e foi retomado nesta semana com a apresentação do seu voto.

O que está em jogo

O STF julga a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que condiciona a responsabilização civil das plataformas à existência de uma ordem judicial para retirada de conteúdo. O julgamento reúne dois recursos que discutem até onde vai o dever das empresas de remover publicações consideradas ilícitas ou ofensivas e se essa remoção pode ocorrer sem intervenção do Judiciário.

A decisão deve ter impacto direto sobre a liberdade de expressão, a moderação de conteúdo e o combate à desinformação, em um cenário muito mais complexo do que aquele em que o Marco Civil foi concebido.

“O desafio que a gente tem hoje é muito maior do que tínhamos no período de redação do MCI. Diante disso, precisamos recalcular a rota evitando o arbítrio excessivo que possa prejudicar a liberdade de expressão”, avalia Yasmin Curzi, professora da FGV Direito Rio e pesquisadora na Universidade da Virgínia.

Já para Jonas Valente, pesquisador do Oxford Internet Institute e integrante do DiraCom, o debate sobre a responsabilização das plataformas deveria estar sendo conduzido no Congresso Nacional. “Essa é uma questão que precisava ser resolvida no âmbito de uma legislação que proteja direitos e não no âmbito judiciário, como tem sido feito”, afirma.

Francisco Brito Cruz, diretor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), reconhece a crítica, mas pondera que a atuação do Supremo tem ocorrido diante de um vácuo legislativo prolongado.

Para ele, o STF respondeu a uma crescente ansiedade social diante de episódios graves, como os atentados contra a democracia e a escalada da desinformação durante a pandemia de covid-19. “O Supremo deu tempo para que o Congresso agisse, mas, na ausência disso, acabou se vendo obrigado a atuar”, avalia.

Essa visão é reforçada pelo próprio presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, que afirmou na abertura da sessão de quarta-feira (5) que, mesmo na ausência de legislação específica sobre o caso, os juízes devem atuar.

Leia também>> Veja o que significa o voto do relator pela inconstitucionalidade do Artigo 19 do MCI

Interpretação conforme

O ministro André Mendonça propôs uma interpretação do artigo 19 do MCI conforme à Constituição para limitar a aplicação do dispositivo em diferentes contextos. Ele defendeu o texto atual da lei como um ponto de partida válido, mas fez distinções entre tipos de serviços e apontou limites à atuação do Estado e das plataformas.

O primeiro argumento da tese do magistrado foi a diferenciação entre redes sociais abertas e aplicativos de mensagem privada, como o WhatsApp. Para o ministro, serviços de mensageria não podem ser equiparados a mídias sociais e, portanto, não estariam sujeitos às mesmas obrigações.

“Prevalece a proteção à intimidade, vida privada, sigilo das comunicações e proteção de dados”, afirmou no voto. “Portanto, não há que se falar em dever de monitoramento ou autorregulação na espécie.”

Mendonça também se opôs à remoção de perfis de usuários por decisão das plataformas, mesmo diante de conteúdos considerados problemáticos. Para ele, é inconstitucional suspender ou excluir contas, salvo quando comprovadamente falsas, como no caso de perfis que imitam pessoas reais ou operam de forma automatizada, os chamados “robôs”. “É inconstitucional a remoção ou a suspensão de perfis de usuários, exceto quando comprovadamente falsos”, escreveu.

Para Paloma Rocillo, diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), o voto parte de uma lógica jurídica centrada em garantias processuais, mas deixa lacunas importantes.

“Ao defender a constitucionalidade, o ministro se debruçou em uma perspectiva procedimental para a interpretação jurídica do nosso ordenamento – que é de pensar os procedimentos que podem fortalecer os direitos – mas eu também acho que o voto dele poderia ter abordado outros elementos que estão mais relacionados aos modelos de negócios das plataformas digitais”, avaliou.

Liberdade de Expressão no centro da tese

Na primeira parte da leitura do seu voto, o ministro André Mendonça deixou claro que seu ponto de partida seria a liberdade de expressão. Para ele, esse direito fundamental está no centro da controvérsia sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) e deve ser protegido com prioridade. Apesar de reconhecer as transformações trazidas pelas plataformas digitais na dinâmica da esfera pública, Mendonça argumenta que essas mudanças não devem justificar alterações substanciais no entendimento jurídico da liberdade de expressão, sob pena de enfraquecimento do próprio ideal democrático.

Sua tese sustenta que apenas a responsabilização posterior, mediante ordem judicial, é compatível com o papel central da liberdade de expressão em democracias constitucionais. O ministro expressa receio de que, sem esse cuidado, tanto o Estado quanto atores privados passem a exercer poder excessivo sobre o discurso público, criando riscos de censura e restrição ilegítima da manifestação de ideias e opiniões.

Essa leitura dialoga com a perspectiva apresentada por Paulo José Lara, co-diretor executivo da ARTIGO 19 Brasil. Para ele, o voto de Mendonça elenca elementos importantes sobre o lugar estruturante da liberdade de expressão, inclusive ao apontar sua dimensão coletiva e seu papel na sustentação do Estado Democrático de Direito. No entanto, a posição da ARTIGO 19 Brasil defendida por Lara diverge da conclusão dos três ministros que votaram pela inconstitucionalidade. 

Ele avalia que a inconstitucionalidade pode ampliar ainda mais o poder das plataformas digitais, favorecendo uma concentração de poder informacional que ameaça não só a diversidade de vozes, mas também projetos colaborativos como enciclopédias digitais.

A organização defende que a liberdade de expressão não pode ser usada como argumento para desresponsabilizar empresas que lucram com a amplificação de conteúdos potencialmente danosos. Regras democráticas de regulação devem ser aplicadas, argumentou Paulo José Lara: “Trata-se de um debate a ser realizado no legislativo e com a adoção de políticas públicas para a democratização e diversificação das tecnologias de informação”.

Limites à atuação e deveres das plataformas

Outro ponto da tese defendida pelo ministro André Mendonça é o de que as plataformas digitais têm o dever de identificar usuários que violem direitos de terceiros, conforme previsto no artigo 15 do MCI, mas a responsabilização deve recair sobre o autor da postagem, e não sobre a empresa. Isso reforça a ideia de que os provedores atuariam como facilitadores da identificação, mas não como partes diretamente responsáveis por danos causados por terceiros.

Mendonça reconheceu, também, a possibilidade de remoção de conteúdos sem ordem judicial, desde que haja previsão legal ou nos termos de uso das plataformas.

No entanto, estabeleceu que, mesmo nesses casos, devem ser seguidos protocolos mínimos de proteção ao usuário. Entre os requisitos estão: acesso às razões da exclusão, preferência por decisão humana (com uso limitado de IA), direito ao recurso e resposta adequada e em tempo razoável.

Por fim, o ministro afirmou que, salvo quando houver previsão legal explícita, as plataformas não devem ser responsabilizadas pela manutenção de conteúdos que, ainda que julgados ofensivos posteriormente pelo Judiciário, tenham sido originalmente publicados por terceiros, incluindo postagens com opiniões ou manifestações de pensamento. Para Mendonça, atribuir tal responsabilidade abriria margem para censura e violação à liberdade de expressão.

Devido processo e deveres das plataformas

Nos últimos pontos de seu voto, o ministro André Mendonça reforçou que as plataformas podem ser responsabilizadas quando descumprem obrigações legais previstas em seus próprios termos de uso – como a aplicação isonômica das regras – ou deixam de adotar mecanismos de segurança digital que evitem a prática de ilícitos. Para ele, essas condutas omissivas ou comissivas, quando comprovadas, rompem o dever procedimental que lhes é imposto pela legislação brasileira.

Outro aspecto central da tese apresentada é a exigência de que decisões judiciais que determinam remoções de conteúdo sigam o devido processo legal. Mendonça argumenta que essas ordens devem ser fundamentadas de forma específica e acessíveis às plataformas, mesmo em casos sigilosos, garantindo a elas o direito de impugnar.

“Em observância ao devido processo legal, a decisão judicial que determinar a remoção de conteúdo [a] deve apresentar fundamentação específica, e, [b] ainda que proferida em processo judicial sigiloso, deve ser acessível à plataforma responsável pelo seu cumprimento, facultada a possibilidade de impugnação”, explicou o magistrado.

A ênfase no devido processo foi destacada também pela diretora do IRIS, Paloma Rocillo, que vê essa abordagem como essencial para assegurar direitos em contextos de moderação.

“Os votos dos ministros Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e, agora, de André Mendonça trouxeram com força elementos do devido processo legal, como transparência, necessidade de justificativa e possibilidade de contestação das decisões de moderação quando há interferência”, afirmou. Para ela, essa perspectiva fortalece as decisões com base em princípios constitucionais e evita arbitrariedades.

André Mendonça também dirigiu um apelo aos poderes Legislativo e Executivo para que avancem na atualização do marco legal sobre o tema e na formulação de políticas públicas específicas.

Defendeu a adoção de um modelo de “autorregulação regulada”, no qual as próprias plataformas definem suas normas, por meio dos Termos de Uso, mas sob fiscalização de um órgão público. Mendonça chegou a sugerir a Controladoria-Geral da União (CGU) como um órgão que poderia exercer essa função de supervisão.

Interferência silenciosa das big techs

A retomada do julgamento no STF coincidiu com a divulgação coordenada de reportagens que alertavam para um possível colapso no Judiciário, caso o artigo 19 do Marco Civil da Internet fosse considerado inconstitucional. O Intercept Brasil revelou, com exclusividade, que os dados alarmistas vieram de um estudo do RegLab, um centro de pesquisa ligado ao escritório Baptista Luz, que atua com empresas do setor de tecnologia e que foi financiado pelo Google Brasil.

A informação, omitida das manchetes, aparecia apenas nos anexos do relatório, junto da declaração de que a empresa tem interesse direto no julgamento. Embora o documento afirme que não houve interferência da big tech nos resultados, o episódio levanta suspeitas sobre tentativas indiretas de moldar o debate público em um momento decisivo para o futuro da regulação das plataformas no país.

Próximos passos do julgamento

Ainda faltam votar os ministros Flávio Dino, Nunes Marques, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Edson Fachin. A expectativa é que o julgamento seja retomado na próxima quarta-feira (11), pela manhã, com o voto de Flávio Dino.

*As análises e interpretações de especialistas presentes nesta matéria – com a exceção de Paulo José Lara – foram obtidas, com autorização, da live “Poder Judiciário e moderação de conteúdo: julgamento do artigo 19”, promovida pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) na noite do dia 5 de junho.

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