Uma regulação de plataformas baseada em direitos humanos é urgente e a cooperação da sociedade civil é fundamental para o combate à desinformação. Essas são algumas das conclusões trazidas pelo relatório “Eleições, direitos digitais e desinformação: desafios e aprendizagens a partir da experiência brasileira de 2022” publicado pela organização Derechos Digitales.
Para a organização, o exemplo brasileiro pode ser utilizado como ponto de reflexão para outros países, em especial os do Sul Global, principalmente no que se refere a questões regulatórias, atuação das plataformas e autoridades e também iniciativas da sociedade civil.
O relatório analisa e conclui que não só a Justiça Eleitoral estava bem mais preparada para o pleito de 2022, como também a sociedade civil estava bem mais organizada. “Diante de ameaças à democracia pelo autoritarismo latente de Bolsonaro, uma marca do pleito de 2022 foi, sem dúvidas, uma sociedade civil muito mais atenta, organizada e articulada no combate à desinformação”, pontua o texto. Esse também foi um dos destaques de outro relatório sobre o combate à desinformação no Brasil.
A partir dessa e outras análises, a Derechos Digitales elenca algumas lições deixadas pela experiência das eleições de 2022:
- Os efeitos da desinformação sistemática podem enfraquecer a democracia e favorecer rupturas políticas e institucionais, mas não podemos buscar soluções simples para um problema complexo;
- Uma regulação de plataformas baseada em direitos humanos e mecanismos concretos por maior transparência na moderação de conteúdos são urgentes;
- Uma Justiça Eleitoral célere e diligente, contando a colaboração de outros atores relevantes exercendo seus respectivos papéis, é crucial, sempre respeitando os limites institucionais;
- A importância de protocolos eleitorais, políticas adaptadas a contextos locais e a eficiência na atuação das plataformas;
- A cooperação da sociedade civil e o trabalho coletivo para lidar com a complexidade do fenômeno da desinformação são fundamentais para uma abordagem baseada no respeito a direitos fundamentais.
O relatório
O relatório é dividido em três eixos. O primeiro deles faz uma contextualização do cenário político no país desde 2018, com o pleito que elegeu o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Uma das marcas da eleição de 2018 foi o uso de estratégias de comunicação em plataformas digitais para campanhas de desinformação e propaganda em rede, especialmente a partir do WhatsApp e do uso de técnicas de disparos em massa”, destaca o documento. Assim, a primeira parte se volta a compreender as dinâmicas da comunicação política daquele pleito e o que se seguiu para 2022.
Já o segundo eixo faz um apanhado da atuação da Justiça Eleitoral e de outras autoridades durante as eleições de 2022, buscando discutir as principais medidas e mudanças regulatórias de 2018 até 2022 voltadas para o combate à desinformação, além de estabelecer qual o quadro de legislações que trata do período eleitoral ainda antes disso.
“Se em 2018 as autoridades eleitorais foram pegas de surpresa com os impactos das fake news no comportamento dos eleitores, a especificidade das eleições de 2022 foi, ao contrário, uma Justiça Eleitoral bem mais preparada como resultado de uma construção gradual ao longo de quatro anos”, analisa o relatório. No entanto, a pesquisa destaca que essa atuação não esteve livre de controvérsias e críticas.
Nesse período, o relatório retoma a inação do então Procurador Geral da República, Augusto Aras e faz um retrospecto do inquérito das fake news aberto pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli, para contextualizar o cenário que se desenhava ainda em 2019. O trabalho também pontua os movimentos legislativos desse período, como a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das fake news e o andamento do PL 2630/2020, conhecido como PL das fake news.
A publicação de resoluções pelo Tribunal Superior Eleitoral também foi destaque na retrospectiva, principalmente três delas que tentaram suprir lacunas da legislação eleitoral, as duas primeiras voltadas para atualização de regras sobre propaganda eleitoral e a terceira sendo especificamente voltada para o combate à desinformação, que autoriza a remoção de conteúdo idêntico já categorizado como desinformação pelo Tribunal sem apresentação de URL específica.
“A repercussão desta resolução foi controversa: por um lado, foi vista como uma medida excessiva que poderia criar precedentes perigosos ao dar maior poder à Justiça Eleitoral para a retirada de conteúdos, com potencial comprometimento da liberdade de expressão de eleitores e candidatos, entre outros direitos. Por outro, foi interpretada como medida necessária diante da conjuntura política com alta circulação de desinformação, de ataques ao processo eleitoral e à democracia, principalmente, por parte da campanha e de apoiadores de Bolsonaro”, analisou a autora do relatório, a pesquisadora Anna Bentes.
O TSE também instaurou o Programa de Enfrentamento à Desinformação e um Sistema de Alertas para o recebimento de denúncias. A pesquisa do Derechos Digitales apurou junto ao TSE que o órgão recebeu 39.215 denúncias de desinformação entre o dia 16/08/2022 (data de início da campanha eleitoral) e 31/12/2022, a maioria delas no Twitter (17.638), seguido das plataformas da Meta: WhatsApp (4.931), Facebook (4.765) e Instagram (4.535):
“Uma hipótese para o alto número de denúncias no Twitter é que esta plataforma costuma concentrar parte do debate público sobre política no país, o que pode, em parte, ter estimulado os usuários a ficarem mais atentos à desinformação e mais propensos a denunciar conteúdos suspeitos. Isso não significa, entretanto, que esta foi a plataforma com maior circulação de desinformação ou que nas outras plataformas houve menos circulação de notícias falsas, mas apenas que usuários do Twitter utilizaram mais os canais oficiais da justiça eleitoral para denunciar”, destaca o relatório.
O terceiro eixo do relatório analisa as plataformas digitais e o ecossistema de desinformação. Para compreender a ação das plataformas no combate às informações falsas, o relatório analisa e compara os memorandos e acordos estabelecidos entre as big techs e o Tribunal Superior Eleitoral no âmbito do Programa de Enfrentamento à Desinformação e as principais medidas tomadas por elas em 2022. A pesquisa também retoma os embates com o aplicativo Telegram e analisa as diferentes arquiteturas das redes.
“Nas entrevistas, uma avaliação quase unânime de diferentes profissionais sobre a atuação das plataformas foi a insuficiência de suas medidas e políticas no enfrentamento à desinformação, discurso de ódio e outros ilícitos eleitorais. Embora a grande maioria reconheça que elas tiveram uma postura bem mais ativa em 2022 do que em 2018, as medidas tomadas por elas são ainda pouco eficientes diante da escala e dos velozes fluxos de (des) informação”, ressalta o relatório.
A relação entre gastos com publicidade e desinformação também são abordadas no relatório, em que são ressaltados alguns dos principais desafios diante da profissionalização de uma indústria de influência que instrumentaliza as estruturas de propaganda e comunicação das plataformas para difundir desinformação.
Por fim, o relatório também destaca a pressão da sociedade civil organizada, que se articulou e atuou no monitoramento em tempo real e incidência. “Além das pesquisas específicas de cada grupo ou organização, uma iniciativa importante que gerou impactos durante as eleições foi a Sala de Articulação Contra a Desinformação (SAD),158 que conseguiu reunir mais de 100 entidades da sociedade civil para discutir direitos digitais e cobrar das plataformas medidas efetivas contra a desinformação”, indica o texto. Análises de grupos de pesquisa e as mudanças causadas por elas também são elencadas no apanhado de iniciativas.