Eleições são um tema que mobiliza a mídia e a sociedade, gerando debates, embates, polarizações. Desde a redemocratização, as eleições, sobretudo no âmbito federal, viram foco das atenções e pautam até mesmo as relações interpessoais. Bem… Nem todas as eleições. Você se lembra em quem votou nas últimas eleições para os conselhos tutelares? Provavelmente você sequer votou. Nem nas últimas, nem em nenhuma outra. Provavelmente, você nunca foi a um conselho tutelar ou sabe onde fica a unidade mais próxima de você.
Temos eleições agendadas para outubro, nas quais serão eleitos conselheiros tutelares em todo o Brasil. Pense em quantos santinhos você recebeu, quantas matérias leu a respeito, se viu campanha em alguma mídia. Aliás, pense no que você sabe sobre esse órgão, seus papéis e funções, sua atuação na sociedade. Pense em quantos conselheiros ou candidatos ao cargo você conhece, e o quanto de informação buscou acerca da trajetória e do trabalho de cada um deles. Pense em onde você pode conseguir estas informações.
Saiba, no entanto, que há um grupo bastante interessado e informado sobre essas eleições por todo o Brasil – os religiosos conservadores. Com ênfase nas pautas de costumes, as campanhas e atuação de pessoas ligadas a igrejas católicas e neopentecostais enfocam o que chamam de ideologia de gênero, a questão do aborto, a noção de família e, claro, identidade religiosa. Uma atuação alinhada a bancadas evangélicas, com forte teor conservador e ancorada no apoio de pastores e fiéis das igrejas. A pauta moral e religiosa teve um papel central na campanha presidencial de 2022, especialmente no primeiro turno das eleições. Agora vemos estas questões retornarem em disputas políticas locais, no que pode ser um prenúncio do que pode circular nas eleições para as prefeituras, em 2024.
Uma busca no Google Imagens por “campanha evangélicos conselho tutelar” apresenta como resultado uma série de santinhos em que os candidatos se apresentam como pastores, padres e, em alguns casos, citam passagens da bíblia e apresentam a defesa da família e o combate à ideologia de gênero nas escolas como mote de campanha. No período que antecipou a eleição de 2019, o site da Igreja Universal [1]convocava seus fiéis a votarem em “pessoas com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus.”
Em Gravataí, o candidato a conselheiro Samuel Serra publicou um vídeo em seu Instagram criticando o uso das cores do arco-íris nos materiais de divulgação da Feira do Livro da cidade, argumentando que o intuito seria cumprir uma agenda de ideologias a serem incutidas ainda na infância. A descrição em seu perfil inclui “Contra Ideologia de gênero”. Em 2020, uma conselheira de Santa Cruz do Sul foi destituída do cargo por atuar em um conflito familiar envolvendo uma criança trans com base em valores de sua religião, ferindo o ECA.
Em Belo Horizonte, um vereador ligado à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) abriu uma CPI[2] na Câmara Municipal, acusando a Prefeitura de perseguição religiosa contra cristãos após nove candidatos ligados à IURD terem tido sua candidatura indeferida por não cumprirem os requisitos exigidos pelo município para o pleito de 2023. Nas eleições de 2019, em São Paulo, 53% dos eleitos são ligados a igrejas neopentecostais[3], segundo apurou o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
A desinformação e a falta de divulgação sobre as eleições para os conselhos tutelares interessam a muita gente. Candidatos identificados como religiosos em seu material de campanha recebem apoio e divulgação nos cultos e nos sites de denominações como a IURD. Com a convocação para a participação dos fiéis, as igrejas garantem a eleição de seus representantes que, muitas vezes, têm em seu mandato no conselho uma forma de ingresso na política institucional, elegendo-se posteriormente para cargos legislativos ou apoiando candidatos.
A função dos Conselheiros é zelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, quando cabível, suas ações são revistas e fiscalizadas pelo Ministério Público, o que inibe abusos e dificulta atuações fora da legalidade. No entanto, existem hoje no Brasil quase 6 mil conselhos tutelares, garantindo capilaridade e presença nos mais diversos territórios, o que proporciona proximidade com um público geralmente vulnerável e a possibilidade de formação de ampla base eleitoral que se deixa capturar pelas pautas conservadoras e de costumes.
Para garantir uma atuação isenta, laica e autônoma deste importante dispositivo da rede de proteção às infâncias, pautada pelos Direitos Humanos e pelos instrumentos legais de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, é imprescindível e urgente a ampla participação da sociedade civil no pleito que se aproxima. O que só poderá acontecer com conscientização e informação sobre a importância dos conselhos tutelares na construção de uma sociedade mais justa para todos.
[1] Publicação no site da IURD, disponível em: https://www.universal.org/noticias/post/conselho-tutelar-e-nosso-dever-participar/ Acesso em 04/09/2023.
[2] Reportagem do Jornal Estado de Minas, disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/07/26/interna_politica,1525165/conselheiros-tutelares-sao-alvo-de-cpi-na-camara-de-bh.shtml Acesso em 18/08/2023.
[3] Reportagem do Jornal El País, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-15/igrejas-evangelicas-neopentecostais-dominam-conselhos-tutelares-em-sao-paulo-e-no-rio.html Acesso em 18/08/2023.