O balanço da campanha presidencial de 2022 indica que os dois últimos dias antes do primeiro turno foram marcados pela circulação intensa de notícias falsas e esforços de criar pânico moral, especialmente em torno de pautas que tocam em questões religiosas. Da exploração do candidato padre à implantação de banheiro misto nas escolas, passando por uma suposta interceptação de Marcola e pela exploração do vídeo de um ‘satanista’, houve uma onda anti-Lula, aparentemente, significativa nas redes. Essa onda, cuja dimensão real não é possível medir, pode ajudar a explicar a diferença de votos entre o que previam as pesquisas realizadas na sexta e sábado e os resultados no domingo.
Alguns pontos de análise:
- Quem analisa redes viu a força das ações de última hora da extrema-direita em todas elas, com destaque para WhatsApp, TikTok, Kwai e YouTube. Apenas para ilustrar, o vídeo do Pingo nos is falando do Marcola atingiu 1,4 milhão de views em 14 horas, em acompanhamento feito pela Novelo Data.
- Os monitoramentos de instituições acadêmicas e organizações da sociedade civil conseguiram captar a intensificação da circulação de notícias falsas nas redes abertas e em grupos públicos dos aplicativos de mensagens. Não há, contudo, como saber qual foi o tamanho dessa onda, porque não há como captar o que se passa no submundo profundo do WhatsApp e grupos fechados de Facebook. Este universo é gigantesco, e não é possível estabelecer nenhuma amostra representativa.
- Parte do conteúdo que circulou não está baseado apenas em mentiras, mas em afirmações não verificáveis. São boatos ou afirmações genéricas, que buscam ativar o medo e o pânico a partir de questões morais. Recebi incontáveis comentários, de pessoas de várias partes do Brasil, sobre como material desse tipo (ex. ilustrações sobre o que seria um banheiro misto de meninos e meninas em escolas), especialmente focado no público cristão, foi usado como justificativa para alterações de voto. Parece rudimentar que o debate político seja feito com base nesse tipo de ilações genéricas, mas não deveríamos nos surpreender depois de 2018.
- É evidente que muitas vezes essas afirmações são usadas como escudo para defender decisões já previamente tomadas. Mas seria importante haver pesquisa de opinião para buscar medir alcance e impacto de parte dessas informações enganosas. Sem pesquisa quantitativa, os elementos existentes permitem construir hipóteses, mas não cravar o que aconteceu.
- As fake news contra as urnas eletrônicas e alegando fraude no sistema eleitoral seguiram circulando com intensidade, mas tiveram menor impacto em função de a eleição não ter terminado em primeiro turno e de a diferença entre os dois candidatos ter sido menor do que apontavam as pesquisas. Mesmo assim, preocupa a capacidade de se inventar fatos que envolvem o Exército sem respostas à altura das Forças Armadas.
- As plataformas atuaram bem em alguns casos de mais flagrante irregularidade, mas o modelo de recomendações baseado em afinidade segue gerando problemas grandes. Apenas como exemplo, o YouTube tomar a Jovem Pan como fonte confiável de informação foi um dos motivos que deu enorme impulso para um vídeo comentando uma suposta interceptação de Marcola.
- Ações de reta final têm sido a marca dos últimos processos eleitorais. Nesse sentido, ao optarem por não fazer pesquisa de boca de urna, os institutos de pesquisa se descredibilizaram. Não há como saber o quanto do crescimento dos votos em Bolsonaro se deve a mudanças de última hora na decisão do eleitor, a intenções não captadas em pesquisas anteriores ou ao fato de as abstenções afetarem mais um público com tendência de voto em Lula.
- Em suma, ainda que não seja possível explicar o que aconteceu no domingo apenas como exploração de fake news, seria erro ainda maior fechar os olhos para os indícios de que elas podem ter tido impacto relevante. É preciso mais pesquisa (e não menos) para entender o que ocorreu.
- A conclusão mais relevante para este momento parece ser a de que a desinformação segue revelando um problema estrutural na organização do ambiente informacional brasileiro. Nas redes abertas, como YouTube, Kwai e TikTok, o sistema de recomendações oferece aos usuários principalmente conteúdos afins a sua perspectiva de mundo.
- Nas redes fechadas, o debate público segue se dando, desde 2015, de forma subterrânea, a partir de uma segmentação muito determinada por redes da vida offline (família, amigos etc.). Embora o WhatsApp tenha colocado mecanismos de fricção relevantes, o fato de o debate público se dar de forma fragmentada e ‘enterrada’ e, majoritariamente, anônima torna-o uma ferramenta muito poderosa para a disseminação de boatos e desinformação.
Dado esse cenário, não é possível afirmar que a desinformação não teve impacto relevante sobre o resultado do primeiro turno. A hipótese mais forte é a contrária: a de que a desinformação tenha sido decisiva para que a eleição não tenha se encerrado no primeiro turno.