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acervo pessoal

out 4, 2022 | pontos de vista

Tentativas de gerar pânico moral marcaram reta final do primeiro turno

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O balanço da campanha presidencial de 2022 indica que os dois últimos dias antes do primeiro turno foram marcados pela circulação intensa de notícias falsas e esforços de criar pânico moral, especialmente em torno de pautas que tocam em questões religiosas. Da exploração do candidato padre à implantação de banheiro misto nas escolas, passando por uma suposta interceptação de Marcola e pela exploração do vídeo de um ‘satanista’, houve uma onda anti-Lula, aparentemente, significativa nas redes. Essa onda, cuja dimensão real não é possível medir, pode ajudar a explicar a diferença de votos entre o que previam as pesquisas realizadas na sexta e sábado e os resultados no domingo.

Alguns pontos de análise:

  1. Quem analisa redes viu a força das ações de última hora da extrema-direita em todas elas, com destaque para WhatsApp, TikTok, Kwai e YouTube. Apenas para ilustrar, o vídeo do Pingo nos is falando do Marcola atingiu 1,4 milhão de views em 14 horas, em acompanhamento feito pela Novelo Data.
  2. Os monitoramentos de instituições acadêmicas e organizações da sociedade civil conseguiram captar a intensificação da circulação de notícias falsas nas redes abertas e em grupos públicos dos aplicativos de mensagens. Não há, contudo, como saber qual foi o tamanho dessa onda, porque não há como captar o que se passa no submundo profundo do WhatsApp e grupos fechados de Facebook. Este universo é gigantesco, e não é possível estabelecer nenhuma amostra representativa.
  3. Parte do conteúdo que circulou não está baseado apenas em mentiras, mas em afirmações não verificáveis. São boatos ou afirmações genéricas, que buscam ativar o medo e o pânico a partir de questões morais. Recebi incontáveis comentários, de pessoas de várias partes do Brasil, sobre como material desse tipo (ex. ilustrações sobre o que seria um banheiro misto de meninos e meninas em escolas), especialmente focado no público cristão, foi usado como justificativa para alterações de voto. Parece rudimentar que o debate político seja feito com base nesse tipo de ilações genéricas, mas não deveríamos nos surpreender depois de 2018.
  4. É evidente que muitas vezes essas afirmações são usadas como escudo para defender decisões já previamente tomadas. Mas seria importante haver pesquisa de opinião para buscar medir alcance e impacto de parte dessas informações enganosas. Sem pesquisa quantitativa, os elementos existentes permitem construir hipóteses, mas não cravar o que aconteceu.
  5. As fake news contra as urnas eletrônicas e alegando fraude no sistema eleitoral seguiram circulando com intensidade, mas tiveram menor impacto em função de a eleição não ter terminado em primeiro turno e de a diferença entre os dois candidatos ter sido menor do que apontavam as pesquisas. Mesmo assim, preocupa a capacidade de se inventar fatos que envolvem o Exército sem respostas à altura das Forças Armadas.
  6. As plataformas atuaram bem em alguns casos de mais flagrante irregularidade, mas o modelo de recomendações baseado em afinidade segue gerando problemas grandes. Apenas como exemplo, o YouTube tomar a Jovem Pan como fonte confiável de informação foi um dos motivos que deu enorme impulso para um vídeo comentando uma suposta interceptação de Marcola.
  7. Ações de reta final  têm sido a marca dos últimos processos eleitorais. Nesse sentido, ao optarem por não fazer pesquisa de boca de urna, os institutos de pesquisa se descredibilizaram. Não há como saber o quanto do crescimento dos votos em Bolsonaro se deve a mudanças de última hora na decisão do eleitor, a intenções não captadas em pesquisas anteriores ou ao fato de as abstenções afetarem mais um público com tendência de voto em Lula.
  8. Em suma, ainda que não seja possível explicar o que aconteceu no domingo apenas como exploração de fake news, seria erro ainda maior fechar os olhos para os indícios de que elas podem ter tido impacto relevante. É preciso mais pesquisa (e não menos) para entender o que ocorreu.
  9. A conclusão mais relevante para este momento parece ser a de que a desinformação segue revelando um problema estrutural na organização do ambiente informacional brasileiro. Nas redes abertas, como YouTube, Kwai e TikTok, o sistema de recomendações oferece aos usuários principalmente conteúdos afins a sua perspectiva de mundo.
  10. Nas redes fechadas, o debate público segue se dando, desde 2015, de forma subterrânea, a partir de uma segmentação muito determinada por redes da vida offline (família, amigos etc.). Embora o WhatsApp tenha colocado mecanismos de fricção relevantes, o fato de o debate público se dar de forma fragmentada e ‘enterrada’ e, majoritariamente, anônima torna-o uma ferramenta muito poderosa para a disseminação de boatos e desinformação.

Dado esse cenário, não é possível afirmar que a desinformação não teve impacto relevante sobre o resultado do primeiro turno. A hipótese mais forte é a contrária: a de que a desinformação tenha sido decisiva para que a eleição não tenha se encerrado no primeiro turno.

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João Brant

Coordenador geral do *desinformante e diretor do Instituto Cultura e Democracia

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