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jan 4, 2022 | destaques, notícias

Perseguição religiosa em nome dos “cristãos” deve pautar eleições

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A desinformação atinge todos os nichos e tem se alastrado principalmente em espaços religiosos, como apontam alguns estudos. Olhando atentamente para esse cenário está a atuação do Coletivo Bereia, de informação e checagem de notícias no âmbito religioso. Bereia é uma antiga cidade da Macedônia que, segundo a Bíblia,  se destacou por exaltar a verdade.

Os de Bereia dedicaram-se a avaliar se tudo correspondia à verdade. – Atos 17:11

A editora-geral do Coletivo Bereia, Magali Cunha, avalia que o panorama para 2022 indica que os políticos devem adotar a pauta cristã nas campanhas A pauta da perseguição religiosa também deve entrar no debate.  Confira a entrevista completa com a doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora em Comunicação, Religião e Política na equipe do Instituto de Estudos da Religião (ISER), jornalista, e editora-geral do Coletivo Bereia, Magali Cunha.

Liz Nóbrega: Quais são os maiores desafios de checar fatos de um nicho tão específico como a religião  e ao mesmo tempo tão presente no nosso cotidiano?  

Magali Cunha: O primeiro desafio é compreender esse universo, que é muito plural e envolve a emoção. A gente está lidando com uma temática que afeta a vida das pessoas, envolve emoção e crença. Então a gente não está trabalhando com objetividade, mas com subjetividade. O Coletivo Bereia, onde tenho atuado como jornalista e pesquisadora, nasceu de uma pesquisa da UFRJ que tentou mapear os caminhos da desinformação pelo WhatsApp em grupos religiosos, particularmente evangélicos, em duas cidades, Rio de Janeiro e Recife.  A gente entrou num terreno completamente novo, não havia e não há qualquer outro grupo que faça um trabalho tão específico como esse. Tivemos que aprender com a prática, então foi um grande desafio. Esse foi um primeiro desafio, criar uma metodologia que fosse compatível com essa realidade e tomar por base os elementos dessa pesquisa que gerou o projeto. 

Liz Nóbrega:  A religião é uma crença, a fé é baseada nas experiências pessoais de cada um, então é uma questão muito subjetiva. Como vocês balanceiam isso e até onde pode ir a checagem de fatos para não esbarrar com dogmas religiosos? 

Magali Cunha: A gente tem como princípio respeitar muito porque a liberdade religiosa está na lista dos direitos humanos e é também um direito constitucional. Em segundo lugar, a partir desse respeito, trabalhamos com objetividade científica, tanto da parte do jornalismo, que também é uma ciência, e também com os princípios científicos da informação, da verificação e comprovação, que é base de toda ciência, o empirismo. Então nós nos baseamos nesses dois elementos buscando com eles não interferir naquilo que vem a ser crença. O fato de a pessoa crer não justifica uma mentira, o fato de haver uma crença não justifica o engano nem a manipulação de informações. A gente tem o respeito pelas crenças, mas aquilo que ultrapassa crença, está no terreno da mentira, da manipulação, do engano, é aí que a gente entra como contribuição – resguardando as crenças, mas identificando aquilo que é um engano,  uma falsidade e que deve ser alertado e corrigido. 

Liz Nóbrega: O Coletivo Bereia acabou de completar dois anos e nesse pouco tempo vocês já se depararam com a pandemia e também com a infodemia, como a OMS denomina a desordem informacional. Como você avalia a desinformação religiosa nesse contexto pandêmico? 

Magali Cunha: Não estava na nossa pauta de cobertura tantos temas de saúde, apesar de a pesquisa que eu mencionei, do Instituto NUTES/UFRJ, que é um instituto que trabalha com saúde e foi pesquisar religião justamente por perceber como saúde já era um tema forte de desinformação. O corpo é um elemento importante em todas as religiões, o cuidado com o corpo, a forma de purificação do corpo. O que aconteceu com a Covid-19, e me surpreendeu, é que a desinformação se alastrou em grupos religiosos. O negacionismo veio do próprio governo federal e do Ministério da Saúde, que colaborou para que houvesse disseminação de desinformação porque não atuou no processo educativo da população. Isso que já circulava com força fora do ambiente religioso acabou se alastrando pelas medidas preventivas que levaram ao fechamento de igrejas, prejudicando lideranças religiosas e acabaram colocando isso como perseguição religiosa, essa foi a grande falsidade que a gente teve que verificar. O que mais teve não foram nem as medidas de cura, sugestões as mais variadas possíveis para prevenção, mas foi a questão da perseguição religiosa. Então a gente teve que, o tempo todo, trabalhar com a verificação dessa temática para mostrar que medidas coletivas de prevenção, que levaram ao fechamento de igrejas por conta da aglomeração, diziam respeito a medidas de saúde pública, medidas sanitárias e não a uma perseguição religiosa. 

Liz Nóbrega: Recentemente a UFRJ divulgou uma pesquisa apontando a propagação da desinformação nos grupos religiosos de WhatsApp. Com base nesses achados, e também na experiência à frente do Bereia, você observa uma maior vulnerabilidade dos fiéis em grupos religiosos?

Magali Cunha: Sim. A pesquisa da UFRJ é pioneira, abre um caminho para muitas outras áreas do conhecimento ampliarem esses estudos. No exterior a gente já tem outros estudos e a pesquisa comprovou que no Brasil a gente vai na mesma linha do que já está sendo dito: grupos religiosos são movidos pela crença. O segundo elemento é um sentimento de pertença, pertencer a uma comunidade facilita a proliferação dos grupos de WhatsApp. Os grupos de WhatsApp, segundo a pesquisa da UFRJ, se tornaram um novo ´ir à igreja´, principalmente agora no período da pandemia. As mídias sociais ocuparam esse espaço das comunidades que não puderam estar reunidas e os grupos de WhatsApp se tornaram comunidades múltiplas, amplas, em que as pessoas podem compartilhar coisas, podem compartilhar a fé com a sua comunidade, então há um sentido de confiança muito grande nesses grupos. Então esses dois elementos, crer e o sentido da pertença, é que facilitam essa propagação. Grupos interessados em interferir no debate público viram nessas características uma forma de conquistar público para as mentiras, para a desinformação e acabaram produzindo conteúdo com linguagem e apelo específico para grupos religiosos.

Liz Nóbrega: Como você observa o papel dos líderes religiosos na disseminação de conteúdos falsos? 

Magali Cunha: São pessoas super valorizadas, são os sacerdotes, as pessoas responsáveis pela liderança da comunidade, o padre, o pastor, aquela pessoa santa, que nunca poderia mentir, né? Quando um conteúdo falso vem de uma liderança, há uma alta credibilidade dos fiéis. Essa dimensão do papel do líder no sentido da crença é muito forte. E também no sentido da pertença porque, afinal, é o guia daquele grupo do qual as pessoas se sentem parte. É muito significativo esse valor simbólico  atribuído. Entre as lideranças, um primeiro grupo é um grupo que sabe o que está fazendo, que é ideologicamente orientado e está espalhando a notícia falsa para apoiar uma determinada corrente política. Tem outro tipo de liderança que não sabe que está espalhando um conteúdo falso, está espalhando um conteúdo que ela acredita, assim como fiéis, que acredita que aquilo deva ser dito para a sua comunidade de uma forma educativa.

Liz Nóbrega: E, assim, política e religião sempre andaram juntas, mas ultimamente parece algo mais indissociável. Como você avalia esse cenário, essa interseção político-religiosa no âmbito da desinformação? 

Magali Cunha: A relação entre política e religião sempre existiu na história da humanidade. A religião está na base da sociedade, move pessoas, move lideranças políticas, culturas. Isso não quer dizer que a gente deva condenar a relação religião e política, pelo contrário, a gente deve valorizar principalmente em espaços democráticos. É importante que a gente tenha pessoas que são religiosas discutindo política, trazendo seus valores para o espaço público para discussão. Isso não é comprometedor do Estado laico, pelo contrário, é o Estado que valoriza a presença da religião, garante as religiões, o respeito de quem crê e de quem não crê. A relação religião e política se torna nociva quando o Estado não está agindo para proteger as pessoas que não têm crença; quando grupos religiosos tentam interferir no espaço público impondo suas visões de mundo, querendo estabelecer legislação com a sua visão de mundo e quando essa legislação vai colocar uma única visão para todo mundo ou impedir que uma legislação avance. Então a gente precisa cobrar das instituições para que exerçam seus papéis de defensoras da Constituição, do Estado laico. E cobrar do jornalismo, das instituições que trabalham com informação para que exerçam o seu papel denunciando e trabalhando para que os grupos religiosos não sejam nem promotores e nem alvo dessa propagação de desinformação. 

Liz Nóbrega: O Coletivo Bereia apresenta, nas redes sociais, uma série dizendo as mentiras que mais circulam nos grupos de igreja. Você consegue estabelecer ou identificar um denominador comum entre as informações falsas que mais circulam? 

Magali Cunha: A pauta da moralidade é muito forte e ela tem sido usada em processos eleitorais desde 2010, que foi um divisor de águas nas campanhas políticas por conta da eleição de Dilma Rousseff, uma mulher defensora de várias pautas de direitos sexuais, reprodutivos. A pauta já existia mas ganha mais força e intensidade a partir de 2010. Foi muito usada em 2014 para que Dilma não fosse reeleita, em 2018 ela voltou com muita força e todo mundo se lembra da grande desinformação de uma tal mamadeira que era uma grande ameaça e muita gente acreditou nisso. Então a moralidade dos costumes, que implica fortemente na sexualidade, é um tema que permeia grande parte dessas mentiras. Mas, em segundo lugar, tem uma outra pauta que está se revelando muito mais forte de 2018 para cá porque virou política de Estado e deve ser o grande tema para as eleições de 2022, que é o tema da perseguição religiosa. É um tema que apareceu na pandemia, que as igrejas estariam fechadas por perseguição, o que a gente viu que não é verdade. Durante a campanha para as eleições municipais de 2020 apareceu muito boato de que os cristãos estariam sendo restringidos na sua possibilidade de se pronunciar publicamente. Então quando se fala em liberdade religiosa, na verdade o que está muito por trás disso, e várias matérias do Coletivo Bereia já mostram essa verificação, é a defesa da negação de direitos, que esses grupos religiosos tenham o direito de negar direitos e mudar a Constituição se preciso for para que esses direitos sejam negados. É muito sério e deve aparecer com força porque a moralidade religiosa já está enfraquecendo na pauta política. Por exemplo, o candidato (Marcelo) Crivella, no Rio de Janeiro, para poder sobreviver na política se agarrou à pauta da moralidade e não deu certo. Esses grupos que fazem política com a religião já estão antenados e o tema da perseguição religiosa deve ser um tema forte para 2022. 

Liz Nóbrega: O que a gente pode esperar para 2022? 

Magali Cunha: 2022 já está acontecendo, né? A campanha eleitoral já está dada, a gente tem pré-candidatos lançados e muita coisa já está circulando com um apelo religioso. A gente vê, por exemplo, a retomada de uma coisa que aconteceu em 2018, que é o que a gente chama de messianismo: aqueles candidatos como escolhidos de Deus, que vão salvar o Brasil, e tem um discurso religioso com um tom muito forte. O Brasil historicamente tem uma cultura messianista, abraçar esses personagens, heróis que entram para salvar o país. Isso aconteceu em outros processos eleitorais passados, mas em 2018 foi muito forte, inclusive com o nome “Messias” no próprio candidato. Isso foi muito explorado com a religião e já está sendo novamente, como, por exemplo, o candidato Sérgio Moro sendo colocado como paladino da luta contra a corrupção, o nome dele sendo colocado como a pessoa escolhida de Deus já em alguns grupos religiosos; o reforço à reeleição de Jair Bolsonaro com essa ênfase também. E da parte da esquerda, o candidato Lula também tem esse trabalho em torno da imagem dele, não com as tintas carregadas de forma religiosa, mas com esse elemento cultural, histórico, de que é o salvador.  Essa ideia de perseguição religiosa traz com ela a noção de cristãos no coletivo. Isso é um ponto muito importante para a gente observar em 2022: vários candidatos nas eleições de 2020 já se apresentavam não como evangélicos, não como católicos, mas como cristãos. Essa categoria de discurso unifica religiosos católicos e evangélicos e produz uma campanha que chama atenção dos dois grupos e que contenta os dois grupos. Quem se apresenta como cristão fundamentalmente são pessoas de direita, conservadoras, isso se observou na campanha de 2020. Essa campanha vai ser forte, não vai ser fácil, e o elemento religioso vai ser de novo acionado e a gente tem que saber lidar com ele. 

Liz Nóbrega: O que o Coletivo Bereia planeja para ajudar a combater esse cenário de desinformação? 

Magali Cunha: A gente está articulando nossas estratégias para 2022. A gente trabalha com equipes diárias, em duplas ou trios, mas durante a CPI da Covid-19 a gente trabalhou com forças-tarefas. Então estamos antevendo que vamos precisar de forças-tarefas para monitorar campanhas. A gente está renovando o nosso site, com seções novas e uma forma melhor de comunicar com os nossos usuários. Temos as eleições de 2022 como o nosso ponto central de trabalho, não esquecendo, obviamente, as outras temáticas que a gente cobre.

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