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Pontos de vista

mar 17, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

O que a comunicação do Vaticano sobre a saúde do Papa ensina sobre o combate à desinformação?

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Neste domingo o Vaticano divulgou pela primeira vez uma foto do Papa Francisco desde a sua internação, no dia 14 de fevereiro. De lá para cá, no entanto, não faltaram boletins de saúde sobre o estado do pontífice, que vinham sendo divulgados diariamente pela Igreja Católica, geralmente duas vezes por dia.

“O papa dormiu bem”, “teve uma noite tranquila”, “está descansando” eram alguns dos conteúdos dos boletins que têm, normalmente, uma única frase. No entanto, os informativos não revelavam apenas amenidades. No dia 3 de março, o Vaticano publicou “Hoje, o Santo Padre apresentou dois episódios de insuficiência respiratória aguda” e detalhou que foram realizadas duas broncoscopias “aspiração de secreções abundantes”. Já quando se encontrava em um quadro mais estável, o Vaticano disse que divulgaria o boletim de forma mais espaçadamas seguiu publicando todos os dias.

O nível de detalhe e transparência da internação do papa surpreendeu analistas que acompanham o dia a dia da Igreja. Uma matéria do Jornal O Globo indicou essa mudança e informou que se trata por um lado de uma ordem expressa do Santo Padre, uma prática bem diferente de momentos anteriores da Igreja Católica. 

Por exemplo, apesar de o  Papa João XXIII ter sofrido de câncer, a doença só foi confirmada após a sua morte em 1963. O especialista Alberto Melloni, historiador da Igreja e diretor da Fundação João XXIII para Ciências Religiosas de Bolonha, disse ao New York Times que o estado de saúde do Papa sempre foi algo encoberto pela instituição.

Além da personalidade mais transparente do Papa, especialistas também acreditam que a estratégia é uma forma de conter informações falsas sobre o seu estado de saúde. De fato, a desinformação tende a crescer e ganhar terreno no vácuo de informações oficiais. Ou seja, na ausência de informações confiáveis, cria-se um espaço propício para a desinformação. 

Esse tema já foi tratado em outro ponto de vista, quando a professora Raquel Recuero analisou o volume de desinformação sobre a tragédia no Rio Grande do Sul. Na época, a pesquisadora falava sobre preencher esse vácuo: “é importante organizar essas demandas e fazer boletins frequentes e em horários específicos em que as pessoas podem já esperar (e informar desses horários), daqueles conteúdos com maior urgência. Quanto mais informação, menos espaço para a desinformação”.

No caso do papa, mesmo com os boletins, circularam imagens geradas por inteligência artificial do pontífice. Uma delas, checada pela Lupa, mostra o papa deitado em uma cama. Já outra, verificada pelo Fato ou Fake, mente ao colocar o Papa com um respirador e legendas falsas como: “Posso não sobreviver desta vez. — Diz o papa a assessores de confiança antes de ser levado ao hospital. Lembre-se do Papa Francisco em orações”.

Imagem falsa criada com IA que circulou nas redes – Reprodução G1

A estratégia de antecipação, no entanto, dialoga de certo modo com o que chamamos no campo dos estudos da desinformação como prebunking – ou imunização informacional. A medida é uma tentativa preventiva de que a desinformação ganhe força. Ela se baseia na teoria psicológica da inoculação, que sugere que se as pessoas forem preparadas com informações confiáveis antes de elas serem expostas à desinformação se tornarão mais resistentes à desinformação.

O *desinformante usou, em um vídeo da sua série *desinformante explica, a tradução do conceito para imunização informacional porque, de fato, a estratégia funciona de maneira análoga a uma vacina. De acordo com Stephan Lewandowsky e Sander van der Linden, ao expor as pessoas a uma versão enfraquecida de um “ataque” persuasivo (a desinformação), um processo cognitivo-motivacional é desencadeado, levando à produção de “anticorpos mentais” que tornam o indivíduo mais imune à persuasão.

Nos estudos, os pesquisadores sugerem que essa preparação pode se dar por meio de avisos gerais sobre o uso de táticas enganosas por grupos com motivações políticas, instruções mais específicas sobre técnicas retóricas enganosas, explicação de técnicas de manipulação mais amplas e até uso de jogos online que simulam a produção de notícias falsas. De certo modo, a técnica também dialoga com formas de educação midiática.

Em outra pesquisa, os autores Jolley e Douglas descobriram que apresentar um material que contradiz a narrativa conspiratória antes que a pessoa seja exposta a ela pode ser mais efetivo. No estudo que desenvolveram sobre conspirações anti-vacina, quando as pessoas recebiam primeiro o material anti-conspiratório, elas não eram mais afetadas negativamente pela retórica conspiratória. Já se se o material conspiratório fosse apresentado primeiro, o material de contraposição era menos eficaz.

Nota-se que o que se traz é uma contra-narrativa explícita alertando para o possível falseamento da realidade. Já no caso do Papa, falamos sobre expor os fatos de forma mais transparente para a população, o que pode levar também a um aumento de resiliência das pessoas em relação às informações falsas. É uma forma, também, de disputar a narrativa e disputar o campo da comunicação. Se a notícia que o pontífice dormiu bem chegar primeiro, talvez – apenas talvez – isso reduza a chance de alguém acreditar em uma imagem falsa.

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Liz Nóbrega

Coordenadora de Comunicação Estratégica e Inovação do Aláfia Lab. É jornalista, mestre em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN) e doutoranda em Ciências da Comunicação (PPGCOM/USP).