Quase 14% da população brasileira (29,3 milhões de pessoas) vivem em desertos de notícias, municípios sem produção e circulação de informação jornalística, o cenário perfeito para circulação da desinformação, como destacou o coordenador da equipe de pesquisadores do Atlas da Notícia e editor-chefe do Projeto Comprova, Sérgio Lüdtke.
Se com o jornalismo é assim, imagina a checagem de fatos. Até bem pouco tempo ela não alcançava lugares além do eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Mas o cenário vem mudando com iniciativas independentes e núcleos de fact-checking em redações Brasil afora.
“A gente fala da disputa pela atenção das pessoas em meio à quantidade de conteúdos disponíveis, agora imagine disputar em um ambiente em que não há jornalismo, onde as pessoas não têm versões diferentes dos fatos, onde elas se informam por correntes e transmitem informações pelas redes sociais sem a devida verificação da veracidade, sem ouvir fontes confiáveis, sem a diferenciação do que é informação e o que é opinião”, afirmou Ludtke, em entrevista dada ao *desinformante em fevereiro.
“Norte e Nordeste são regiões que carecem de jornalismo profissional e a gente ajudando já faz uma diferença muito grande”, pontua Marta Alencar, fundadora do Coar Notícias, a primeira iniciativa de checagem de fatos do Piauí. O projeto voluntário nasceu do choque de ver as consequências reais da desinformação com o linchamento de Fabiana Maria de Jesus e da carência do combate à desinformação. “É muito gratificante ver que as pessoas sentem que a gente está fazendo a diferença ali naquela região, principalmente uma região onde tem muitos desertos e quase desertos de notícias”.
Com isso, além do jornalismo de qualidade, o combate à desinformação torna-se primordial nessas localidades. “Eu só vim ter essa percepção da importância do projeto quando a gente lançou a primeira checagem, porque os políticos daqui iam para a sabatina, para os debates e jogavam os dados, mas ninguém nunca vinha questionar isso, de onde estavam tirando os dados”, coloca Ítalo Rômany, editor e fundador do Bode Fatos, projeto de checagem recém-lançado na Paraíba.
Rômany destaca que, além de a iniciativa acompanhar a veracidade das informações ditas por autoridades do estado, ela busca uma independência em relação a sua produção. “Eu sempre quis fazer algo que fosse independente, que não fosse ligado a um grupo político, o que é muito comum aqui na Paraíba”, pontuou
Outra iniciativa que surge para esse processo eleitoral no interior do Rio Grande do Sul é o projeto ‘Taura’. Ele se destaca por ter um olhar voltado a checar as declarações de candidatos ao poder legislativo do estado, com foco naqueles que são de Santa Maria e região. “O projeto desempenha o papel de promover o debate sobre os candidatos locais, evidenciando eles e as suas falas; além de aproximar algo que parece distante dessa realidade interiorana – desde o debate para o Legislativo até a verificação de fatos – dos cidadãos. É um projeto que fortalece e assegura o direito à informação confiável e de qualidade para os eleitores”, aponta Wellington Hack, fundador do Taura.
Além disso, Hack aposta nas variações linguísticas para atrair o público. Por exemplo, em vez de usar etiquetas de checagem, utiliza as gaúchetas. “Falar que a informação é falsa nem sempre tem tanto apelo como falar a expressão “mas, tchê, bem capaz!”, expressão corriqueira e que faz mais sentido para a população local”, explica. As demais classificações de veracidade do projeto (verdadeira: “bah, essa informação é tri!!”; e duvidosa: “campeia essa informação direito, aí”), seguem a mesma lógica
A recente iniciativa já traz bons resultados na mudança do debate público. Em checagem realizada nesta semana, por exemplo, o candidato citado por declarar uma informação falsa se desculpou pelo erro e parabenizou o projeto:
A Coar Notícias também vai se voltar, nas eleições deste ano, para a verificação de candidatos estaduais, principalmente de informações que circulam no interior do Piauí a fim de cobrir os desertos de notícias do estado.
Ainda no Nordeste, uma outra iniciativa desponta, o projeto Xereta, um espaço dentro do portal O Avoador. A seção de checagem de fatos cresce desde 2017 no âmbito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e se tornou uma referência de conteúdo verificado em Vitória da Conquista. “Este ano estamos realizando a verificação do conteúdo duvidoso em geral que circula nos grupos de Whatsapp que circula na cidade de Vitória da Conquista, dando um foco especial às eleições. Também vamos iniciar nas próximas semanas a checagem das falas dos políticos locais de extrema direita”, explica a professora responsável Carmen Carvalho.
A expansão da checagem de fatos também chega à região Norte, com um núcleo de verificação de fatos dentro do grupo O Liberal. O Amazônia Check se volta com exclusividade para a verificação de fatos sobre a Amazônia a partir das declarações dos presidenciáveis. Além disso, a iniciativa vai realizar, a partir da semana que vem, entrevistas exclusivas com os candidatos sobre e para a região, buscando compreender as propostas e a veracidade das afirmações.
“É muito bom ver que a gente está saindo do eixo Rio-São Paulo, estamos chegando na região Norte, a luta da desinformação precisa ganhar novas fronteiras e precisa ter esse saborzinho local”, ressaltou Cristina Tardáguila, diretora do International Center for Journalists e fundadora da Agência Lupa, no lançamento do projeto ‘Jogo Limpo’ que financia a iniciativa Amazônia Check.
Já no Espírito Santo, outra iniciativa aparece como um núcleo de checagem de um veículo local. É o ‘Passando a Limpo’ do jornal A Gazeta do Espírito Santo, que inovou criando grupos de WhatsApp para receber conteúdo de usuários e enviar checagens para quem se cadastrar.
Mas a iniciativa da Gazeta quase não foi para a frente. “Quando a gente foi fazer o nosso planejamento da cobertura das eleições, a gente considerava a checagem dos conteúdos de política e aí esbarramos na dificuldade de perna mesmo, de gente para trabalhar”, destacou Joyce Meriguetti, editora da Gazeta. Com o programa de estímulo à criação de núcleos de verificação local, criado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, com o financiamento do Google News Initiative, o núcleo foi possível.
Financiamento da checagem de fatos
A falta de financiamento é um dos principais desafios para o avanço da checagem – e do jornalismo como um todo – no Brasil. Ao mesmo tempo em que muitas iniciativas surgem para acompanhar esse processo eleitoral, muitas não sabem se vão conseguir se manter após outubro. Isso porque muitos projetos foram financiados por plataformas digitais – principalmente Meta e Google – para o fortalecimento do fact-checking neste período.
O Google, com esse financiamento, auxiliou mais de 31 veículos de notícias a criarem seus núcleos de verificação que devem ficar ativos até o dia 31 de outubro. A meta é que sejam feitas 900 checagens em todos os estados brasileiros pelos seguintes veículos:
A Gazeta (ES), Band (SP), Band TV (SP), CBN Cuiabá (MT), Correio Braziliense (DF), Correio de Carajás (PA, TO), Correio do Estado (MS), Estadão Verifica (AP, SE, SP), Estado de Minas (MG), Folha de S.Paulo (SP), Grupo Sinos (RS), GZH (RS), Imirante (MA), Jornal Plural Ltda (PR), Metrópoles (DF), Nexo Jornal (BR), NSC Comunicação (SC), O DIA (RJ), O Popular (GO), O Povo (CE), Portal Cidade Verde (PI), Portal Norte de Notícias (AC, AM, RR), Rádio Bandeirantes (SP), SBT (DF, PA, RJ, RS, SP, MT), Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (PE), Tribuna do Norte (RN), TV Allamanda (RO), TV Aratu (BA), TV Ponta Verde (AL), TV Tambaú (PB), UOL (SP).
O Google também financiou, por meio do YouTube, o projeto ‘Jogo Limpo’, que selecionou O Liberal para a realização do Amazônia Check, além dos veículos e instituições Aos Fatos, Redes Cordiais, Instituto Vero, Agência Pública e Núcleo para a produção de produtos para combater a desinformação.
Já a Meta, com o programa “Acelerando a Transformação Digital”, apoiou financeiramente, com até US$ 2.500, 80 projetos jornalísticos com o intuito de estimular o fortalecimento do jornalismo local no Brasil. Entre os projetos estava o Taura e o Bode Fatos, que surgem a partir desse financiamento.
“Manter um projeto desse tipo somente com fact-checking é muito difícil é muito, tem que ser muito guerreiro”, coloca Ítalo Rômany. “O nosso projeto termina financeiramente dia 30 de setembro, que é o último dia da equipe, mas a minha ideia nesse momento é tentar manter o projeto de alguma forma, tentar essas parcerias institucionais e criar esse esse braço educacional são meus objetivos assim que terminar a eleição”, explica ao falar dos próximos passos do Bode Fatos.
A Coar Notícias também recebeu financiamento da Meta neste projeto e, com o valor, remunerou de forma esporádica os colaboradores que trabalham de forma voluntária no projeto. “Eu quero ganhar dinheiro, claro, mas para mim a Coar é mais do que dinheiro. É como se fosse um papel social, meu papel social como jornalista e como pesquisadora. Apesar dessa paixão, Alencar admite: “É muito complicado você manter uma equipe motivada quando o projeto é voluntário”.