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O fantástico realismo das notícias profundamente falsas

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Há uma semana no ar, Travessia, a nova novela das 21h da Rede Globo, transferiu os espectadores do Pantanal para o Maranhão num piscar de olhos. Ao mesmo tempo, saímos de um modelo narrativo galgado no realismo fantástico onde mulheres viram onça e um senhor que já morreu se transforma em sucuri, para o fantástico realismo das deep fakes e do metaverso, que a obra já promete construir. E no metaverso absolutamente tudo pode ser o que não é.

Logo no primeiro capítulo, o perigo da manipulação de imagens ao alcance de todos é colocado a serviço de uma brincadeira irresponsável de adolescentes, abrindo caminho para o desenrolar da trama. Na cena, um anúncio digital do tipo “procura-se” exibe uma mulher com um bebê no colo e o texto ‘SEQUESTRADORA DE CRIANÇAS – FIQUE ATENTO! Proteja suas crianças’.

A imagem serve de “mockup”[1] no qual o rosto da protagonista, Brisa (Lucy Alves), é encaixado. O acabamento da montagem é razoavelmente bem-feito, graças ao uso de um aplicativo facilmente acessado em smartphones.

Ao passo em que a arte imita a vida e vice-versa, a deep fake ali criada vai virar do avesso a vida de uma mulher inocente e causar um efeito dominó em diversos outros personagens da história. A situação chave é inspirada no caso real de Fabiane Maria de Jesus, linchada até a morte por moradores da periferia do município de Guarujá, no litoral paulista, em maio de 2014. Aos 33 anos, a dona de casa, casada, mãe de duas crianças, foi confundida com um retrato falado de uma sequestradora de bebês que viralizou na internet. Achando-se no direito de fazerem justiça com as próprias mãos, vizinhos da região cercaram e atacaram Fabiane. A multidão enfurecida foi capaz de agir de maneira descontrolada e dominada pelo ódio, transformando o caso no primeiro crime de morte da história ocasionado a partir de uma notícia falsa.

Em entrevista ao podcast Papo de Novela, a autora Glória Perez se disse chocada com o desfecho da história de Fabiane: “O que aconteceu com essa moça me impressionou muito porque me levou a ver tanto a força, quanto a maneira como um boato pode se espalhar tão rapidamente.” A autora também mencionou o comportamento da multidão “como uma força capaz de formar uma terceira pessoa”, que pode surgir a despeito das pessoas envolvidas serem boas ou más. E fez ainda o seguinte paralelo: “No caso de Fabiane, o ponto de partida é na internet, mas o linchamento foi no mundo real. O ‘cancelamento’ é o linchamento virtual. Eu queria que as pessoas que se horrorizam com o linchamento da Fabiane também se horrorizassem com o linchamento virtual.”

Nada é capaz de justificar um crime hediondo. Mas não há dúvidas de que cancelamento, linchamento virtual e discurso de ódio são males contemporâneos a serem fortemente combatidos. Como de costume, as novelas de Perez se baseiam em temas sociais super atuais, sendo bastante comum o pano de fundo sobre uma ordem tecnológica na qual (ou com a qual) ainda estamos aprendendo a conviver.

Ciência e tecnologia ditaram o ritmo das histórias desde a gestação a três, de Barriga de Aluguel (1990), passando pelo transplante de coração que deixava dúvidas quanto aos sentimentos que poderiam eclodir no transplantado (De Corpo e Alma, 1992), ou a duplicata genética de O Clone (2001).  Além disso, temas como as possibilidades de interação que a internet pode promover, pedofilia e cyber bullying já permearam enredos anteriores. Desta vez, Glória Perez promete mergulhar no universo de possibilidades do mundo virtual que permite a construção e a disseminação de desinformação e notícias falsas em larguíssima escala, bem como a criação de realidades paralelas capazes de afetar de maneira inconteste histórias de vidas individuais e coletivas.

Não é de hoje o papel crucial das novelas brasileiras na representação da identidade e dos dramas nacionais, assim como também não é recente o reconhecimento da força comunicacional desse produto cultural, que forma e informa gerações, desde os tempos em que era transmitido apenas pelo rádio. Vieram a TV, o celular, a internet, as redes sociais, o smartphone e a cada novo avanço tecnológico, novas formas de produção, circulação e consumo do conteúdo se consolidaram. Hoje, assistimos à novela junto ao fenômeno da segunda tela, acompanhando e comentando nas redes, seguindo blogs e tuítes noveleiros, escutando podcasts, dando likes e ‘dislikes’ em artistas, muitas vezes afetados pelo desempenho de seus personagens nas tramas.

Pensando nessa forte influência cultural, espera-se que a nova trama das nove paute (e se paute de) muitos dos nossos conflitos sociais atuais. Olhando para nossa história recente, por exemplo, vemos que temas como deep fake, fake news, desinformação, discurso de ódio, linchamento virtual, cancelamento etc., estão diretamente associados às práticas que circundam o processo eleitoral brasileiro. A deepfake mais famosa nesta eleição foi a que a apresentadora do Jornal Nacional Renata Vasconcellos aparece divulgando uma falsa pesquisa de intenção de votos supostamente registrada pelo Ipec e que mostraria o presidente Jair Bolsonaro na liderança da corrida eleitoral, o que nunca aconteceu. 

Ao mesmo tempo em que vivemos as eleições mais marcantes de nossas vidas, estamos aprendendo a lidar, driblar e combater todos esses males que, assim como na trama de Glória Perez, aparecem nos programas eleitorais gratuitos da TV e inundam nossas redes sociais e aplicativos mensageiros. Todos os dias recebemos ou temos notícia de um vídeo editado ou de uma fotomontagem que procure dar veracidade à uma informação falsa, vincule imagens de pessoas idôneas a temas polêmicos e sensíveis, ou busque promover o pânico moral da sociedade, com a intenção de abafar debates realmente necessários.

Se a novela, assim como a vida, é uma obra aberta, será que as mensagens transmitidas por um produto cultural tão marcante de nossa sociedade irão afetar de alguma maneira nosso pleito eleitoral? O que esperar nesse momento? Devemos ficar atentos às respostas da população às provocações de Travessia? Neste primeiro momento, nós da equipe do *desinformante estamos apostando que sim e faremos um acompanhamento da repercussão desses temas nas redes, procurando observar desde a recepção do produto, até as consequências sociais e regulatórias que possam emergir.


[1] O termo mockup é muito usado nas áreas de design e publicidade para referir-se a algum tipo de protótipo em escala ou tamanho real que permita a adaptação de imagens para apresentação de projetos. A partir desse tipo de recurso, é possível realizar apresentações de projetos e produtos bem próximos do resultado real.

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Lena Benz

Produtora Editorial e jornalista, com doutorado em comunicação e cultura. Trabalha com design on e offline e já lecionou na área. Tem interesse pelo papel preponderante do design na cultura digital. É designer do *desinformante.

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