Na última terça-feira (30), Donald Trump completou os 100 primeiros dias de presidência dos Estados Unidos. O momento, apesar de curto, é simbólico e expõe para o mundo o direcionamento da nova gestão do republicano, que visa minar o combate à desinformação e a produção científica no país, além de incentivar a vigilância de cidadãos e funcionários federais com uso de sistemas de Inteligência Artificial.
Desde o primeiro dia, Trump já mostrou o posicionamento do seu segundo mandato em relação à pauta do digital. No dia 20 de janeiro, o presidente concedeu perdão a quase 1.600 pessoas envolvidas no ataque ao Capitólio no 6 de janeiro de 2022 e publicou uma ordem executiva que determina a “restauração da liberdade de expressão” no país, criticando o combate à desinformação.
De lá pra cá, o próprio presidente e seus integrantes repercutiram alegações falsas sobre diversos temas para reforçar decisões políticas, o que a imprensa internacional já chama de “institucionalização da desinformação”. Além disso, esse governo também está sendo marcado pela aproximação das Big Techs, com Elon Musk dentro da administração liderando uma cruzada contra os gastos públicos.
“Em menos de 100 dias, essa nova administração causou tantos danos e tanta destruição. É de tirar o fôlego”, avaliou o ex-presidente Joe Biden, no último dia 15, no primeiro discurso após deixar a Casa Branca.
Abaixo, separamos um apanhado do que já aconteceu neste segundo mandato de Donald Trump em relação à pauta do digital:
1) A máquina desinformativa de Trump
2) Um bilionário no Poder
3) Cortes em pesquisas sobre desinformação
4) Corte em agência de integridade eleitoral
5) Uso de Inteligência Artificial para vigilância
6) Tecnologia intensifica expulsão de imigrantes
7) Reações
A máquina desinformativa de Trump
Um relatório do Observatório Europeu de Meios de Comunicação Digitais evidenciou como o novo presidente dos EUA impulsionou a desinformação sobre a guerra da Ucrânia já no primeiro mês de mandato. Segundo o estudo, entre janeiro e fevereiro deste ano, houve um aumento de 4% em artigos sobre o conflito contendo informações falsas.
A organização europeia afirmou que o aumento de mentiras sobre a guerra “parece dever-se, em parte, ao fato de o Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, ter abraçado algumas narrativas falsas pró-Rússia para descrever a situação na Ucrânia, o seu líder e a responsabilidade pelo conflito”.
O estudo apontou que a retórica adotada por Trump condizia com mensagens falsas promovidas pela propaganda estatal russa, como alegações de que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, recusava-se a realizar eleições e tem um índice de aprovação extremamente baixo. Trump também alegou que Zelensky tinha recusado acordos de paz.
O republicano não se limitou a comentar e espalhar desinformação sobre a guerra da Ucrânia. No final de fevereiro, o presidente postou na própria rede social, a Truth Social, um vídeo produzido com Inteligência Artificial mostrando o que seria o plano para a região de Gaza após o fim do conflito que a região enfrenta, desde 2023, entre Israel e Palestina.
Uma matéria do The New York Times também mostrou como o presidente e integrantes do governo estão utilizando alegações falsas e infundadas para justificar decisões políticas, como corte de gastos e financiamento a programas de pesquisa científica.
“Desta vez, Trump conta com a companhia de um grupo de funcionários do gabinete e assessores que as amplificaram e até mesmo espalharam as suas próprias. Juntos, eles estão efetivamente institucionalizando a desinformação”, trouxe a reportagem do veículo.
Vale lembrar que, no primeiro mandato, Trump chegou a proferir mais de 30,5 mil alegações falsas ao longo dos quatro anos de governança, uma média de 21 falas desinformativas por dia, como mostrou matéria do The Washington Post.
Um bilionário no poder
A entrada oficial de Elon Musk (Tesla, SpaceX e X) no governo Trump também chamou atenção. O bilionário agora chefia o recém-criado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), em um dos episódios mais simbólicos da aproximação entre o novo governo e os gigantes da tecnologia.
Sob o pretexto de enfrentar a “censura ideológica”, Musk promoveu demissões em massa de servidores públicos, anulou contratos federais, obteve acesso a sistemas de múltiplas agências governamentais, nomeou aliados estratégicos para cargos-chave e ordenou a remoção de conteúdos ligados à diversidade, equidade e inclusão.
A posse de Trump, realizada em janeiro, contou com a presença massiva de figuras do Vale do Silício, como Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta), Sundar Pichai (Google), Sam Altman (OpenAI), Tim Cook (Apple) e Shou Zi Chew (TikTok). O estreitamento desses laços indica uma possível reconfiguração de alianças estratégicas em prol do controle da tecnologia e da informação.
Além do simbolismo, os números também impressionam: o fundo de posse de Trump arrecadou mais de 170 milhões de dólares, boa parte vinda de empresários ligados ao setor tecnológico. A influência direta de doadores com interesses regulatórios levanta preocupações sobre conflito de interesses e captura de políticas públicas por corporações digitais.
Em sintonia com o novo clima político, a Meta anunciou em janeiro uma revisão de suas políticas de moderação de conteúdo, prometendo priorizar a “liberdade de expressão”. A mudança, divulgada por Mark Zuckerberg poucos dias após a posse de Trump, foi interpretada como um aceno ao novo governo e à base conservadora, que há anos acusa as plataformas de censura ideológica.
Corte em pesquisas sobre desinformação, COVID-19 e pessoas trans
O Instituto Nacional de Saúde dos EUA (o NIH, na sigla em inglês) encerrou 770 projetos de pesquisa no início de abril, de acordo com a Nature. A mandado do governo Trump, em um curto período de tempo, o órgão cortou financiamento de estudos sobre tópicos considerados “problemáticos” para o novo mandato, como questões vinculadas à COVID-19, à saúde de pessoas transsexuais e à HIV/AIDS.
Ainda segundo a Nature, o fim da pandemia de COVID-19 foi um dos motivos para a interrupção de financiamento. Além disso, a revista norte-americana lembrou que os cortes de pesquisas sobre população LGBTQIAP+ podem estar relacionados à ordem executiva que instrui o governo dos EUA a não reconhecer pessoas transgênero – a política de governo contra essa população também afetou recentemente a senadora Erika Hilton, que teve o gênero alterado para masculino em visto.
Em razão dos cortes, centenas de cientistas foram forçados a interromper seus trabalhos após receberem notificações de que as pesquisas “não entendem mais as prioridades da agência” e institutos nacionais de pesquisa tiveram que demitir funcionários.
O NIH também interrompeu o financiamento de 33 pesquisas sobre hesitação vacinal e que buscam estratégias de adesão à vacinação pela população. O órgão faz parte do Departamento de Saúde dos EUA, que atualmente é liderado pelo conspiracionista antivacina Robert F. Kennedy, indicado pelo próprio Trump.
O Departamento de Defesa dos EUA também encerrou o financiamento para 91 pesquisas em andamento sobre temas relacionados às mudanças climáticas, extremismo e desinformação. Os cortes impactaram, principalmente, a iniciativa da Pesquisa Minerva, projeto estabelecido em 2008 para ajudar o departamento a entender os desafios futuros a serem enfrentados. Em comunicado, o departamento afirmou que se “concentraria nas tecnologias de maior impacto”.
Em fevereiro, o presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, John Roberts, suspendeu uma decisão judicial que obrigava o governo de Donald Trump a manter o repasse de recursos destinados à assistência global. Com a medida, a Casa Branca está liberada para interromper o envio de fundos a países em desenvolvimento, o que deve impactar diretamente programas internacionais de saúde e combate à pobreza.
Cortes também afetam o funcionamento de agências governamentais
Uma das primeiras consequências diretas da nova política de austeridade do governo Trump foi sentida na Agência de Segurança de Infraestrutura e Cibersegurança (CISA), responsável por proteger o sistema eleitoral norte-americano. Em março, a agência foi forçada a congelar iniciativas cruciais de combate à desinformação e proteção contra ataques cibernéticos, incluindo parcerias com governos estaduais, campanhas de conscientização pública e treinamentos para servidores eleitorais.
O congelamento das atividades foi detalhado em um memorando interno obtido pela Wired, que revelou a suspensão de projetos voltados à integridade das eleições de 2024. Sem novos contratos e com recursos limitados, equipes inteiras foram obrigadas a interromper operações preventivas.
Na prática, o corte orçamentário enfraquece a principal linha de defesa contra interferências digitais e campanhas coordenadas de desinformação, justamente num cenário em que essas ameaças devem se intensificar.
Uso de Inteligência Artificial para vigilância
Em abril, o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) foi acusado de monitorar comunicações de funcionários federais em busca de sinais de deslealdade ao presidente Trump e sua agenda. Segundo revelou a agência Reuters, a equipe do DOGE utiliza inteligência artificial para vasculhar e analisar mensagens internas, numa iniciativa que ampliou preocupações sobre vigilância política e abuso de poder.
O sistema é baseado no uso do chatbot Grok, desenvolvido pela xAI, empresa de Musk, e conta com comunicações internas feitas por meio do aplicativo Signal, cujas mensagens podem ser configuradas para desaparecer, prática que pode violar regras federais de arquivamento e comprometer a transparência do governo.
Tecnologia intensifica expulsão de imigrantes
Desde que reassumiu a presidência, Donald Trump voltou a colocar a imigração no centro de sua retórica política, reforçando um discurso nacionalista e anti-imigrante. Em seus primeiros atos, o governo retomou políticas restritivas, endureceu deportações e passou a estimular um sistema de vigilância digital para identificar e remover pessoas em situação irregular, especialmente vindas da América Latina e de países muçulmanos.
A Geo Group, maior operadora de prisões privadas dos Estados Unidos, consolidou-se como peça-chave para que o governo atinja esses objetivos. A empresa expandiu sua atuação com tecnologias de vigilância, como tornozeleiras eletrônicas, relógios inteligentes e aplicativos de rastreamento, que vêm sendo utilizadas para fornecer dados de localização ao Departamento de Imigração e Alfândega (ICE), facilitando prisões e deportações. Segundo organizações de assistência jurídica, centenas de pessoas já teriam sido detidas por meio desse sistema.
Uma das principais apostas da nova gestão é o InmigrationOS, sistema encomendado à empresa Palantir e desenvolvido para integrar e cruzar dados de diversas agências federais. Segundo reportagem do El País, o objetivo declarado da tecnologia é alcançar um “controle absoluto” da população imigrante nos EUA, monitorando comunicações, deslocamentos e dados biométricos.
Outra ferramenta que simboliza o novo momento é o aplicativo “CBP Home”, lançado para substituir o CBP One da gestão Biden. Promovido como uma solução para “autodeportação voluntária”, o app foi alvo de críticas de entidades de direitos humanos, que alertam para o uso coercitivo da tecnologia.
Reações
As movimentações do segundo mandato de Donald Trump acenderam alertas em diferentes partes do mundo. Organizações internacionais, como a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, expressaram preocupação com o desmonte de políticas públicas voltadas à saúde, ciência e direitos humanos nos Estados Unidos.
Relatório da Human Rights Watch expressou a preocupação de que a nova gestão Trump “poderia repetir e até ampliar as graves violações de direitos de seu primeiro mandato”.
Dentro do território norte-americano, universidades, institutos de pesquisa e entidades da sociedade civil vêm denunciando uma escalada autoritária e anticientífica. Em carta aberta, mais de 400 cientistas de instituições como Harvard, MIT e Stanford alertaram para “riscos sistêmicos à produção de conhecimento e à segurança da informação” sob o novo governo.
Nos primeiros 100 dias do segundo mandato de Donald Trump, os democratas intensificaram sua oposição, destacando o que consideram ser uma agenda autoritária e prejudicial à democracia. Senadores democratas realizaram discursos prolongados no plenário para criticar as políticas do presidente, incluindo tarifas protecionistas, ataques ao judiciário
O líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer, disse que “os primeiros 100 dias de Donald Trump foram 100 dias de inferno”.
Já movimentos sociais têm convocado ondas de protestos em grandes cidades como Nova York, Chicago e San Francisco, em crítica a diversas decisões do governo Trump. A pressão popular e internacional indica que, apesar do poder concentrado, o governo Trump enfrentará resistência crescente à sua agenda de desinformação, censura seletiva e vigilância estatal.