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jun 16, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

“Vinagre de Maçã” e a epidemia da cura fácil

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Você merece viver a sua melhor versão.”
“Seu corpo tem o poder de se curar sozinho.”
“Basta mudar sua mentalidade, ajustar a alimentação e confiar no processo.”

Frases como essas, embaladas em vozes calmas e fundos musicais inspiradores, têm se tornado o novo evangelho digital do bem-estar. São vendidas como esperança, mas muitas vezes são apenas armadilhas emocionais disfarçadas de autocuidado. A série Vinagre de Maçã (2025), disponível na Netflix, ao contar a história da influenciadora Belle Gibson, joga luz sobre esse mercado turvo em que o sofrimento real das pessoas é transformado em capital social, engajamento e, claro, lucro.

Não estamos falando só de dicas inofensivas de estilo de vida. Quando alguém afirma ter se curado de um câncer cerebral terminal com sucos verdes e pensamento positivo, a conversa muda de tom. Muda porque, do outro lado da tela, há gente em desespero, lidando com diagnósticos devastadores, agarrando-se a qualquer promessa que pareça oferecer uma saída. A pergunta que fica é: por que queremos tanto acreditar? O que nos faz confiar em promessas tão sedutoras quanto perigosas? 

Entre o like e a mentira

A série Vinagre de Maçã dramatiza, mas não inventa: a história de Belle Gibson é tão absurda na vida real quanto parece na tela. Influenciadora australiana, Belle construiu uma carreira, e um pequeno império digital, em cima de uma mentira que mexe com o mais básico instinto humano: o de querer sobreviver.

Ela afirmava ter sido diagnosticada com um câncer cerebral terminal aos 20 anos e, contrariando todas as previsões médicas, teria se curado apenas com alimentação natural, terapias alternativas e “mudança de mentalidade”. Era a promessa da cura milagrosa, devidamente embalada para as redes sociais.

Cena da série “Vinagre de Maça”, Netflix. Imagem: Divulgação.

Com um discurso empático, fotos de pratos coloridos, e uma narrativa de superação, Belle acumulou seguidores, contratos e visibilidade global. Lançou um aplicativo premiado pela Apple, um livro de receitas que virou best-seller e ainda fazia questão de dizer que parte dos lucros seria doada para instituições de caridade. O problema? Nada disso era verdade.

Belle nunca teve câncer, nunca doou o dinheiro prometido e, ao que tudo indica, construiu sua imagem pública calculando cada passo para alimentar o mito da “garota que venceu a morte com smoothies e gratidão”.

O caso só veio a público quando jornalistas começaram a desconfiar de furos em sua história: diagnósticos contraditórios, informações que não batiam, promessas de doações não cumpridas. O resultado foi o livro The Woman Who Fooled the World (que inspirou a série), uma investigação que revelou não só as mentiras de Belle, mas também o quanto ela foi impulsionada por um ecossistema inteiro que pouco se importou em checar os fatos, incluindo a mídia, editoras e até a própria Apple.

Mais do que a história de uma golpista, o caso Belle Gibson expõe como a desinformação em saúde pode se disfarçar de esperança e encontrar terreno fértil em tempos de vulnerabilidade emocional e desconfiança na medicina tradicional. Infelizmente, ela não foi a primeira, e está longe de ser a última.

O perigo da autoridade sem evidência

A protagonista de Vinagre de Maçã não vendia apenas receitas: vendia esperança. Na série, a personagem reafirma incansavelmente que “comer bem” e “acreditar” são suficientes para curar até um câncer terminal. Esse tipo de discurso é um retrato muito real da era dos influenciadores de saúde, onde o apelo emocional vale mais que evidências científicas e a autoridade se mede em seguidores, não em credenciais.

Não é que alimentação saudável e hábitos positivos não tenham valor: têm, e muito. Mas isso não pode ser usado como atalho para desresponsabilizar políticas públicas, nem como argumento para culpabilizar quem adoece. O bem-estar virou produto de luxo e curas “naturais” passaram a ser vendidas como escolha pessoal, quando sabemos que saúde é também determinada por fatores genéticos, ambientais e, sobretudo, sociais.

Quem tem acesso a comida de verdade, a tempo para descanso, a médicos de confiança? E quem precisa se virar entre jornadas exaustivas de trabalho, ultraprocessados, agrotóxicos e postos de saúde lotados?

Fora das telas, a vida cobra caro por essa fantasia de autocontrole absoluto. A enfermeira Mara Abreu morreu após consumir cápsulas para emagrecer divulgadas em redes sociais. Anabolizantes ilegais seguem sendo promovidos como caminho rápido para o corpo perfeito. E durante a pandemia, influenciadoras usaram arquétipos da maternidade, como o da mãe intuitiva e da mãe protetora, para espalhar medo sobre vacinas e minar a confiança na medicina. A lógica é a mesma de Belle: desconfie da ciência, confie em mim. Só que, diferente de uma série, o final dessas histórias reais muitas vezes é triste.

Desinformação em saúde: riscos individuais e coletivos

O risco de narrativas como a da personagem da série evidencia que o risco não está só na mentira, está no efeito dominó que ela provoca. A desinformação em saúde pode levar pessoas a abandonarem tratamentos médicos, a ingerirem substâncias perigosas vendidas como “naturais” e a se submeterem a rotinas alimentares ou estéticas agressivas, disfarçadas de autocuidado. 

E o impacto não se restringe ao nível individual. A desinformação enfraquece a confiança na ciência, mina políticas públicas e sobrecarrega o sistema de saúde. Foi assim, por exemplo, quando o Brasil perdeu, em 2019, o certificado de “país livre do sarampo” após a queda da cobertura vacinal, consequência direta de campanhas antivacina que se espalharam nas redes.

Esse tipo de desinformação ataca os pilares do SUS: compromete a universalidade ao reduzir o acesso a informações confiáveis; ameaça a equidade ao atingir mais duramente os grupos mais vulneráveis; e fere a integralidade ao deslegitimar profissionais, autoridades sanitárias e instituições científicas. 

Responsabilidade compartilhada

No fim das contas, a história de Belle Gibson não é apenas sobre uma golpista carismática, é sobre todos nós. Sobre o motivo pelo qual seguimos, curtimos, compartilhamos e, muitas vezes, acreditamos sem questionar. Existe um apelo emocional nas narrativas de superação, uma esperança de que exista um atalho, uma solução simples para problemas complexos e as pessoas se agarram a esses fios de falsas esperanças.

As plataformas digitais, por sua vez, não são neutras nesse processo: amplificam o que gera engajamento, independentemente da veracidade, e favorecem conteúdos que mexem com nossas emoções mais básicas: medo, esperança, indignação.

Leia também>> O que as plataformas fazem contra desinformação sobre saúde?

É por isso que a responsabilidade pela desinformação em saúde precisa ser entendida como compartilhada. Cabe às criadoras de conteúdo serem éticas, mas também às empresas de tecnologia reverem seus algoritmos. A imprensa tem o dever de investigar e contextualizar, e o público, de exercitar o ceticismo saudável antes de transformar um post em verdade absoluta.

Mais do que buscar bem-estar, precisamos reivindicar por informação de qualidade. Isso significa exigir a regulação de plataformas, o fortalecimento da ciência e, também, começar a discutir com seriedade a regulação da profissão de influenciador digital. Afinal de contas, em tempos de viralização, vale tudo por engajamento? Incluindo colocar em risco a saúde coletiva?

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Glenda Dantas

Jornalista, ciberativista, pesquisadora e mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas (PósCom/UFBA). Interessada em cultura digital, governança da internet, estudos de gênero e relações étnico-raciais.