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jun 9, 2025 | Destaques, geral, Pontos de Vista

Trump, Musk e o espetáculo das redes: mais um capítulo da longa história de disputas de poder entre o Vale do Silício e Washington

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O fim da relação entre Donald Trump e Elon Musk e o grande espetáculo da briga pública nas redes entre os bilionários, virou o combustível da semana para criadores de memes, comentaristas políticos, jornalistas, futurologistas, e, inevitavelmente, também para esta coluna.

Alguns usuários das redes, especialistas da área e jornalistas se mostraram surpresos com a ruptura. Outros correram para o X para recuperar seus tweets de meses atrás para mostrar a habilidade premonitória. Porém, não existe nenhuma surpresa no desenrolar dos eventos.

Após a despedida de Musk da Casa Branca, as tensões aumentaram nas redes em torno do “One Big Beautiful Bill” (OBBB) de Trump, criticada por Musk como uma “abominação repugnante,” que propõe cortes de impostos extensivos que podem adicionar cerca de US$ 2.4 trilhões à dívida dos Estados Unidos

No vai-e-vem da disputa dos bilionários, Musk pediu o impeachment de Trump, e trouxe novamente à tona a relação entre Trump e o magnata Jeffrey Epstein, preso em 2019 por acusações de abuso de menores e tráfico sexual. Ambos os tuítes eventualmente excluídos por Musk do seu perfil do X.Em resposta, Trump respondeu em sua rede, Truth Social, que a maneira mais fácil de economizar bilhões de dólares no orçamento dos Estados Unidos, é encerrando “os subsídios e contratos governamentais de Elon Musk.”

Musk, dono da empresa espacial SpaceX, ameaçou — e depois voltou atrás — desativar sua nave espacial Dragon, usada pela NASA para transportar carga e tripulação para a Estação Espacial Internacional (EEI). Enquanto isso, no sábado, o presidente Trump disse que Musk enfrentará “sérias consequências” caso apoie políticos democratas em qualquer eleição futura..

A briga das redes entre Trump e Musk só evidencia a relação de dependência entre o Vale do Silício e Washington D.C, que ao longo de duas décadas têm transformado a fronteira entre o setor público e privado nos Estados Unidos mais nebulosa. O que começou com o famoso discurso de eficiência, transparência e inovação, rapidamente demonstrou a disputa de poderes e o sistema de co-dependência entre setor privado e o estado. 

No bromance entre Trump e Musk não há nada de novo. A novidade agora é o espetáculo das redes se tornando uma distração conveniente que desvia a atenção do público de discussões cruciais sobre transparência, conflitos de interesse, e soberania.

A Era Obama

Em seu primeiro mandato em 2009, o então presidente, teve como prioridade o uso de novas tecnologias para que o governo se tornasse mais transparente e eficaz. Obama atraiu veteranos do Vale do Silício para Washington D.C. para fazer essa transição e a Google se tornou peça-chave dessa missão. O então CEO do Google, Eric Schmidt — que em 2009 entrevistou Obama na sede da empresa — apoiou a candidatura do presidente doando US$ 1 milhão diretamente ao candidato e US$ 12.9 milhões para a New American Foundation, um think tank  de políticas públicas no centro do debate do governo de Obama na época.

Após sua eleição, Obama criou uma série de cargos executivos em seu governo, modelados nas práticas corporativas das Big Tech. Funcionários da Google viraram assessores da equipe de transição do candidato, o ex-chefe de políticas públicas globais da empresa se tornou vice-diretor de tecnologia de Obama, e ex-funcionários da Google atuaram no governo em diversas funções.

Muita coisa foi feita. Ao longo do mandato de Obama, a Google criou uma relação próxima com a Casa Branca, fornecendo conhecimento, serviços, consultoria e equipes para projetos governamentais vitais. Assim, o papel da Google no governo de Obama consistia não somente em fazer lobby junto à Casa Branca, mas também colabora com autoridades em ações governamentais.

De acordo com um artigo do Intercept de 2016:

“Só entre janeiro de 2009 e outubro de 2015, funcionários do Google se reuniram na Casa Branca em 427 ocasiões distintas. No total, 182 funcionários da Casa Branca e 169 funcionários do Google participaram das reuniões, com a participação de quase todos os atores da política interna e da segurança nacional na Ala Oeste.”

Embora em 2009, a empresa existisse há apenas 11 anos, a Google já se alinhava ao governo em um momento de escrutínio das suas operações, incluindo batalhas antitruste, questões sobre neutralidade de rede, direitos de privacidade, reforma de patentes e políticas de direitos autorais.

Obama foi conhecido por impulsionar políticas que agradavam aos entusiastas da tecnologia, e utilizando as empresas do Vale do Silício, o ex-presidente soube muito bem fazer uso das ferramentas de soft power ao seu para criar pontes diplomáticas pelo mundo.

A Consultoria de Musk

Embora sendo um outsider, a relação próxima de Musk com a política norte-americana não é novidade. Como qualquer outro broligarca do Vale do Silício, os posicionamentos políticos de Musk oscilam conforme seus interesses econômicos, ambição de poder, influência,  e expansão do seu império corporativo. Relatos indicam que Musk chegou a esperar seis horas em uma fila para apertar a mão de Barack Obama. Em 2017, ele rompeu com Trump por conta de suas políticas sobre mudanças climáticas. No ano seguinte, Musk ainda se descrevia como politicamente moderado. Em 2021 Musk disse que preferiria ficar fora da política. O bilionário, que declarou seguidamente ter votado em Joe Biden, em 2022 sentiu-se ignorado pelo então presidente após não ter sido convidado para uma reunião de empresários na Casa Branca. Por fim, ao longo de 20 anos, Musk também recebeu cerca de US$38 bilhões em contratos governamentais, empréstimos, subsídios e créditos fiscais do governo dos Estados Unidos, e somente em 2024, esse número chegou ao ápice de US$6,3 bilhões.

No mundo dos broligarcas não existe altruísmo. Musk foi um dos maiores financiadores da campanha de Trump, gastando mais de US$250 milhões e foi conhecido como um de seus maiores fan-boy nas redes. Assim, sem qualquer experiência em políticas públicas e munido de um conhecimento adquirido com base em teorias da conspiração, em troca Musk foi indicado para um cargo não remunerado como Special Government Employee (SGE), uma designação a funcionários do governo dos Estados Unidos para funções com duração máxima de 130 dias.

Utilizando a cartilha de gerenciamento de negócios da indústria de tecnologia no Vale do Silício para acabar com a “tirania da burocracia,” nesse breve período da consultoria, Musk criou o Department of Government Efficiency (DOGE), que juntamente com uma equipe jovem e igualmente inexperiente — provavelmente tal qual a equipe de Obama — operaram de acordo com a famosa missão de “move fast and break things,” desmantelando e demitindo equipes, alterando processos, destruindo políticas internas e externas, e realocando investimentos em prol da eficiência e corte de custos.

Controle através da Transparência

Entre Obama com Eric Schmidt e Trump com Elon Musk, o jargão da “transparência” aos moldes do Vale do Silício se tornou peça-chave do governo. Em seu primeiro dia no cargo, Obama assinou o Memorando sobre Transparência e Governo Aberto, inaugurando uma nova era de responsabilidade. 

Na sua administração, sites foram criados para reportar transparência de gastos, cidadãos poderiam então fazer petições online, e cerca de US$ 600 milhões foram gastos para construir o healthcare.gov, um site — central da Lei de Assistência Médica Acessível de Obama — que mal funcionava quando foi lançado em 2013. Para resolver essa crise, Obama contratou um engenheiro da Google que mais tarde se tornou o chefe do departamento de Serviço Digital dos Estados Unidos. No que diz respeito à ascensão das Big Tech em Washington D.C., Obama pode ser considerado um pioneiro e o principal responsável por levar o Vale do Silício à capital.

Não muito diferente, 16 anos mais tarde, Trump abre a Casa Branca para Musk gerar mais transparência, eficiência e economia através do DOGE. Hoje, muito parecido com uma página do X, seu site mostra dados, relatórios e números em letras garrafais demonstrando o que melhor faz: eficiência e economia. Basta ir ao site do DOGE ou no seu perfil do X para assegurar a transparência. Afinal, como afirma Musk “a transparência constrói confiança,” e em caso de conflitos, eles mesmos apontarão os problemas. Assim, o próprio agente, supostamente causador dos danos, reporta seus erros e espera ser responsabilizado pela sociedade: para isso, basta acessar o site.

Em Sociedade da Transparência, Byung-Chul Han argumenta que transparência se tornou o novo dogma que compromete o significado de “confiança”. Como o autor coloca, “a sociedade da transparência não é uma sociedade de confiança, mas uma sociedade de controle.” Nessa ideia, basta acessar as redes e saber o que está acontecendo em tempo real. Porém, é através do discurso da transparência que líderes políticos ofuscam seus próprios interesses e conflito.

Com o discurso da transparência, através da campanha “Governo Aberto”, uma das principais medidas do início do mandato de Obama foi a proibição de ex-lobistas em cargos na administração, e a retirada de lobistas dos conselhos consultivos. Isso não impediu que Eric Schmidt se tornasse membro do Conselho de Assessores de Ciência e Tecnologia, e também um dos principais conselheiros econômicos do então presidente. Isso também não distanciou a Google de ocupar uma posição de privilégio na sua administração

De maneira um tanto similar, no caso de Musk, DOGE e Trump, a transparência serve para controlar conflitos de interesse, disseminar informações falsas e teorias da conspiração, reportar dados fictícios, vocalizar crises diplomáticas e debater seus problemas pessoais. Afinal, estariam todos assegurados pela transparência. Aos que buscam responsabilidade, basta vocalizar suas preocupações aos próprios envolvidos. Assim, a transparência é banalizada, manipulada, controlada e publicada nas redes.

A Interdependência entre o Vale do Silício e Washington D.C.

Alguns argumentam que as empresas de tecnologia penetram nas infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais de tal forma que o governo perde a sua autonomia, dando espaço ao setor tecnológico. No entanto, a relação entre as empresas de tecnologia e Washington D.C. já de longa data é uma história de forte interdependência e disputa de poder.

Ao mesmo tempo, as próprias empresas de tecnologia — incluindo figuras como Elon Musk e suas empresas — dependem do governo dos EUA para garantir contratos governamentais bilionários, expandir sua influência global, e assegurar apoio político contra regulações tanto no cenário doméstico quanto internacional. Nesse jogo de poder, o interesse público e a soberania frequentemente é deixado em segundo plano.

No final do século XIX, o governo dos Estados Unidos passou a atuar como patrocinador da inovação tecnológica à medida que os militares se interessavam cada vez mais em explorar tecnologias para fins de defesa. Essa relação se intensificou durante a Segunda Guerra Mundial quando empresas como IBM e AT&T passaram a prestar serviços diretos ao governo, desenvolvendo tecnologias voltadas às demandas da guerra. Esse ambiente de cooperação entre Estado e setor privado criou as bases institucionais e tecnológicas que, mais tarde, permitiriam o surgimento do Vale do Silício.

Durante a Guerra Fria, no governo de Eisenhower, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criou a Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas —mais conhecida como ARPA (Advanced Research Projects Agency)— para trabalhar em projetos militares. Um dos grandes projetos da ARPA seria a ARPANET, uma grande rede para transmissão de dados militares entre universidades, centros de pesquisa e órgãos do governo, dando origem então ao que chamamos hoje de “internet.” 

Na década de 1970, tem início o processo de restauração do capital financeiro, que alcança seu auge nos anos 1980 com o governo Reagan. Suas políticas promoveram ampla desregulamentação do setor financeiro, abrindo caminho para um ambiente mais favorável à ascensão do Vale do Silício como polo de inovação tecnológica e empreendedorismo.

Os anos 1990 se tornaram a era de ouro para o Vale do Silício. Empresas de tecnologia contribuíram significativamente para a aceleração do crescimento da produtividade dos Estados Unidos. 

Na administração de Obama, através de portas giratórias, o governo dos Estados Unidos intensificou o processo de plataformização com o apoio direto de suas multinacionais de tecnologia que fornecem infraestrutura digital, desenvolvem processo de inovação e expertise técnico de acordo com o manual de instruções do Vale do Silício.

Ainda em 2007, durante uma entrevista com Barack Obama na sede da Google, Eric Schmidt cometeu um ato falho ao perguntar:

Qual é o motivo fundamental para achar que esta empresa vai — desculpe — este país vai se tornar um grande país?

O deslize do ex-CEO da Google talvez revele mais do que um simples erro de linguagem. Ele pode servir como a evidência da forte simbiose entre empresas de tecnologia e estruturas de governo dos Estados Unidos — uma linha cada vez mais tênue, onde não se distingue mais onde começa um e termina o outro.   

Ainda é cedo para saber se a tensão entre Musk e Trump acalmou. De todo modo, esse é mais um capítulo da longa história de enredos cruzados entre poder e dependência mútua na política dos Estados Unidos, onde as costas leste e oeste, e líderes de Washington D.C. e broligarcas do Vale do Silício se emaranham. No caso de Trump e Musk, em nome da transparência, o espetáculo e caos é apenas a face visível dessa longa relação.

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Andressa Michelotti

Doutoranda do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do Margem — Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG) e membro do Governing the Digital Society na Universidade de Utrecht, Holanda.