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Trend do Studio Ghibli ignora direitos autorais e expõe necessidade de educação midiática

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Os usuários que acessaram recentemente redes sociais voltadas para compartilhamento de fotos, provavelmente se depararam com uma enxurrada de imagens no estilo das animações do Studio Ghibli. Pessoas, paisagens e até animais de estimação foram transformados digitalmente com a utilização do ChatGPT, evocando a estética nostálgica e emocionalmente cativante dos clássicos do estúdio japonês. 

A “Trend do Studio Ghibli” se espalhou rapidamente, impulsionado pelo apelo visual e pelo desejo dos usuários de se verem retratados nesse universo. Influenciadores digitais, atores, políticos e até perfis oficiais do governo brasileiro e do exterior aderiram à trend.

Com a facilidade oferecida por ferramentas de inteligência artificial, que geram as imagens de forma quase instantânea, a febre se alastrou pelas plataformas e levantou questionamentos sobre a apropriação estética sem crédito ou consentimento, alertando para os impactos dessa prática na valorização do trabalho autoral.

As discussões sobre direitos autorais e propriedade intelectual também ganharam força, especialmente diante do uso de inteligência artificial para replicar estilos consagrados sem a devida autorização, e reflete preocupações mais amplas sobre a banalização dessas tecnologias e suas implicações na indústria criativa.

A artista visual e pesquisadora Maria Mariô concorda que há uma banalização do que é produzido por inteligência artificial, especialmente quando se compara a recepção dessas criações com a de obras feitas por pessoas. “Se uma pessoa utilizasse uma grande base de dados para reproduzir estilos de diversos artistas e lucrasse com isso, a reação do público e do meio jurídico seria diferente da receptividade que ocorre quando a produção é intermediada por inteligência artificial”, pontuou.

Os desafios éticos no modelo de produção

A criação de imagens que seguem a estética da recente trend do Studio Ghibli só foi possível porque, em 24 de março, a OpenAI atualizou sua inteligência artificial, o GPT-4o, e lançou um gerador de imagens avançado, capaz de seguir comandos detalhados e complexos.

O pesquisador e diretor do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, André Fernandes, explica que, para produzir essas imagens, o modelo de inteligência artificial precisou ser exposto a um vasto conjunto de dados coletados de diversas fontes. Por exemplo, se esse conjunto inclui um grande número de ilustrações no estilo artístico do Studio Ghibli, a IA identifica os elementos característicos dessa estética e passa a reproduzi-los.

Os desafios éticos desse processo de treinamento começam, segundo Fernandes, quando se questiona se as empresas responsáveis pelo desenvolvimento da IA têm legitimidade para coletar obras protegidas por direitos autorais, como livros ou qualquer outro tipo de arte. A preocupação cresce especialmente quando essas criações são utilizadas sem autorização dos artistas, sem compensação pelo uso de suas obras e se elas estão sob regime de direito autoral. 

Para Maria Mariô, esse cenário revela um desequilíbrio na relação entre artistas e empresas de IA generativa. “É um contexto questionável porque as grandes empresas estão tirando lucro disso, ganhando visibilidade na mídia e se tornando virais, enquanto os artistas ficam com os ônus, o medo e a falta de segurança.”

Maria Mariô
Artista visual Maria Mariô. Autor: @adiano_mendz

Ela explica que muitos criadores começam a questionar até mesmo se devem ou não publicar suas obras na internet, pois a sensação é de que esse ambiente se tornou um espaço onde tudo pode ser roubado.

Dilemas ideológicos da viralização

A cartunista Sarah Andersen, conhecida por suas tirinhas de humor e estilo de traço característico, foi uma das artistas afetadas pelo uso indiscriminado de inteligência artificial para replicar sua estética sem autorização. A polêmica começou em 2022 quando usuários identificaram que um modelo de IA havia sido treinado com suas ilustrações, permitindo que qualquer pessoa gerasse imagens no mesmo estilo sem crédito ou compensação à artista, e além disso sendo utilizados por pessoas da extrema direita americana, em contraponto aos seus valores pessoais e artísticos que são progressistas. 

Para André Fernandes, o dilema ideológico aparece quando há o “atrelamento de uma arte, de um estilo que uma pessoa construiu ao longo da vida passa a ser utilizado para um objetivo fim que a pessoa por diversas razões não concorda, levando em conta que o direito autoral ainda é vigente sobre aquelas obras”.

Andersen se manifestou publicamente contra essa apropriação, destacando a falta de consentimento e os impactos desse tipo de tecnologia sobre o trabalho dos ilustradores.

O cenário se repete agora com a reprodução dos Studio Ghibli. O renomado diretor, animador e roteirista Hayao Miyazaki, que criou o Studio em 1985, deu sua opinião sobre esse tema em 2016, antes mesmo do ChatGPT existir. Em um vídeo antigo recuperado por usuários, o diretor critica o uso desse tipo de ferramenta na animação:

“Eu não consigo assistir a essa coisa e achá-la interessante. Quem cria essas coisas não tem ideia do que significa a dor. Eu estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia no meu trabalho. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida.”, Hayao Miyazaki.

Produções como A Viagem de Chihiro e Meu Vizinho Totoro, aclamadas pelo público e produzidas pelo Studio Ghibli, são lembradas não apenas por suas histórias envolventes, mas também pelos cenários deslumbrantes, cores vibrantes e traços delicados que conferem um charme único às animações. 

Trend do Studio Ghibli chegou a perfis políticos

A Casa Branca na última quinta-feira (27) publicou um meme gerado por IA e inspirado nessa estética, para zombar de uma imigrante detida e deportada sob acusação de tráfico de drogas. A imagem mostra a mulher algemada e chorando, observada por um agente.

O post, intitulado “Traficante de fentanil detida”, inclui fotos da imigrante e gerou polêmica sobre a utilização de IA para fins políticos, especialmente quando empregado para menosprezar indivíduos ou grupos vulneráveis. A OpenAI, criadora do ChatGPT, afirmou que o uso de sua tecnologia para tais propósitos viola suas políticas de uso.

Captura de tela d perfil oficial da Casa Branca no Instagram.

No Brasil, perfis de governadores como Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, além de ministras do governo Lula, como Anielle Franco (Igualdade Racial) e Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima), também compartilharam as imagens. Marina Silva, no entanto, apagou a publicação horas depois e se retratou, explicando que havia sido alertada por seguidores sobre a possível violação de direitos autorais no aplicativo.

A ministra ressaltou ainda o cuidado das animações japonesas na promoção do desenvolvimento sustentável, destacando que essas produções frequentemente exploram a relação entre humanos e natureza. Segundo ela, filmes do Studio Ghibli “nos fazem refletir sobre a necessidade da coexistência harmoniosa com o meio ambiente e as consequências da exploração desenfreada dos recursos naturais”.

O que diz a lei?

Do ponto de vista jurídico, as ferramentas de inteligência artificial que reproduzem estilos ou movimentos artísticos específicos não oferecem tantos argumentos legais para fundamentar uma alegação de violação de direitos autorais. É o que explica o pesquisador e diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais, Luca Schirru.

Segundo ele, o direito autoral protege sempre expressões, e não ideias. Por isso, discutir esse tema levanta uma série de nuances, já que o estilo pode representar tanto um movimento artístico amplo — como o impressionismo ou o modernismo — quanto algo mais específico, como o traço característico do Studio Ghibli ou dos Simpsons.

“Se formos falar em proteger o direito autoral de um estilo, seria possível que uma pessoa detivesse, por exemplo, os direitos pelo estilo impressionista e não permitisse que outros artistas produzissem dentro desse movimento”, explicou.

Uma das principais questões jurídicas, segundo Schirru, está no uso de obras protegidas para treinar os sistemas de IA. Se ilustrações e frames de vídeos protegidos por copyright foram utilizados sem autorização, isso pode configurar uma violação de direitos autorais. O que inicialmente poderia ser visto como um dilema ético, então, se torna uma questão jurídica.

Esse debate ocorre em meio a um intenso lobby de grandes empresa de inteligência artificial — OpenAI, Google, Meta e Microsoft — pela ampliação do conceito de fair use (uso justo) nos Estados Unidos. Essas empresas pressionam o governo norte-americano para flexibilizar ainda mais as leis de direitos autorais, argumentando que isso garantiria vantagem competitiva contra rivais internacionais, especialmente a China, e justifica como uma questão de segurança nacional.

O objetivo é legitimar o uso de conteúdos protegidos no treinamento de IA sem a necessidade de permissão dos autores, evitando assim o pagamento ou a negociação de licenças com os criadores.

No Brasil, porém, a legislação adota uma abordagem diferente. Em vez do conceito amplo e flexível do fair use, aqui vigora um sistema de limitações e exceções, no qual o uso de obras protegidas sem autorização só é permitido em casos previstos na lei e que estão conectados com garantias e direitos fundamentais. Entre eles estão: citações para fins didáticos, acessibilidade para pessoas com deficiência e divulgação de discursos e notícias em jornais e periódicos. As limitações e exceções para fins de pesquisa, educação, preservação e outras finalidades de interesse público são defendidas em pesquisas do Instituto Brasileiro de Direitos Autorias.

Outra questão levantada por Schirru é o uso comercial das produções geradas por esses modelos de IA, ou seja, a reprodução de um estilo artístico por empresas com fins lucrativos. No caso da ‘trend’ do Studio Ghibli, a alta demanda fez com que o recurso rapidamente se tornasse restrito: apenas usuários pagantes passaram a ter acesso à ferramenta, ainda assim com limitações para evitar sobrecarga. Para usuários gratuitos, a OpenAI anunciou que a funcionalidade será retomada, mas com um limite de três criações por dia.

Testes realizados por repórteres do Business Insider revelaram um tratamento diferenciado nas respostas da IA conforme o tipo de usuário. Na versão paga, o ChatGPT gerou imagens conforme solicitado. Já na versão gratuita, o repórter Alistair Barr teve seu pedido recusado sob o argumento de que a ferramenta não poderia gerar imagens no estilo do Studio Ghibli, pois o estúdio de animação é protegido por direitos autorais, e seu estilo artístico também possui proteção legal.

“O usuário se viu compelido a assinar para poder produzir. Quem tinha assinatura conseguia gerar imagens mais rápido, e as pessoas se sentem atraídas a utilizar o recurso porque querem entrar na trend. Mesmo que o uso não esteja necessariamente condicionado ao pagamento, esse modelo acaba trazendo clientes para a plataforma”, destacou Schirru.

Ele também alerta para implicações jurídicas mais amplas: “Usar essas imagens para treinar uma IA com fins comerciais pode gerar implicações jurídicas, especialmente se essa finalidade representar o risco de substituir artistas humanos”.

O papel da educação midiática para sensibilização do público

O CEO da OpenAI, Sam Altman, revelou que o ChatGPT conquistou um milhão de novos usuários em apenas uma hora na segunda-feira (31), justamente no período em que a trend do Studio Ghibli começou a ganhar mais popularidade.

“A viralização [de um conteúdo] revela uma importância ainda maior da educação midiática”, afirma a pesquisadora e jornalista Januária Alves. Para ela, em um cenário onde grande parte das informações consumidas pelas pessoas chega por meio das mídias, é urgente garantir que o público desenvolva pensamento crítico para compreender o que circula, quais são os interesses por trás das mensagens, suas origens e quem as produz.

No contexto da Inteligência Artificial, esse desafio se torna ainda mais complexo, pois trata-se de uma tecnologia amplamente utilizada, mas ainda pouco compreendida. “Mais do que nunca, é fundamental levar para a sala de aula discussões sobre o uso da IA, questionar junto com os alunos para que ela serve e quais são suas funções em nossas vidas”, enfatiza.

A pesquisadora também destaca a importância de reconhecer a autoria humana por trás das obras de arte. “Precisamos entender que são criações feitas por pessoas, que carregam componentes únicos e intransferíveis. Cada obra de arte reflete o conhecimento e a experiência de quem a produziu”, pontua.

Segundo ela, a construção de um pensamento crítico é essencial para provocar questionamentos sobre a apropriação indevida dessas produções. “Será que é justo pagarmos uma obra, nos apropriarmos dela em um minuto, criarmos algo baseado nessa produção artística sem pagar, sem creditar, sem sequer saber sua origem, apenas porque achamos bonita?”, questionou.

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