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acervo pessoal

ago 14, 2023 | pontos de vista

Tecnologia na educação: iniciativas regulatórias brasileiras e recomendações da Unesco

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Estou vivendo aquele momento: filho de 9 anos, sem o seu próprio celular (a duras penas) mas absolutamente fissurado naquele jogo de futebol de uma certa associação internacional que comprou até a voz dos locutores mais populares para seduzir as crianças que não desgrudam o olho da tela.  Estabeleço tempo pra que ele não fique fora da tendência e tenha assunto com os colegas da sala. 

A gente poderia discutir aqui a arquitetura das redes e das plataformas de jogos construídas para que o usuário  passe o maior tempo da vida ali, sem sair pra fazer xixi. E o quanto isso deveria ser ilegal, imoral e antiético quando se trata de crianças e adolescentes em pleno desenvolvimento das suas capacidades, gostos, cérebro, corpo. Mas hoje eu me dedico a refletir sobre nossa aceitação plena enquanto sociedade dessas ferramentas que acabam por nos ser impostas pela vida digital. Quando e como vamos construir uma política sólida, mas não engessada, participativa e equitativa de uso da tecnologia nas escolas? 


Um relatório global da Unesco sobre uso da tecnologia na educação, publicado em julho de 2023, propõe quatro questões sobre as quais os formuladores de políticas e as partes interessadas na educação devem refletir. Vamos aos  4 tópicos: 

  1. É apropriado?

O uso da tecnologia pode melhorar alguns tipos de aprendizado em alguns contextos. O relatório cita evidências que mostram que os benefícios do aprendizado desaparecem se a tecnologia for usada em excesso ou na ausência de um professor qualificado. Por exemplo, distribuir computadores aos alunos não melhora a aprendizagem se os professores não estiverem envolvidos na experiência pedagógica. Os smartphones nas escolas também provaram ser uma distração para o aprendizado, mas menos de um quarto dos países proíbem seu uso nas escolas.
As desigualdades de aprendizagem entre os alunos aumentam quando a instrução é exclusivamente remota e o conteúdo on-line nem sempre é apropriado ao contexto. 

  1. É equitativo?

Durante a pandemia da Covid-19, a rápida mudança para o aprendizado online deixou de fora pelo menos meio bilhão de estudantes em todo o mundo, afetando principalmente os mais pobres e os que vivem em áreas rurais. O relatório destaca que o direito à educação é cada vez mais sinônimo de direito a uma conectividade significativa, mas uma em cada quatro escolas primárias não tem eletricidade. O texto pede a todos os países que estabeleçam padrões para conectar as escolas à internet entre agora e 2030 e que o foco permaneça nos mais marginalizados.

  1. É escalável?

Evidências sólidas, rigorosas e imparciais do valor agregado da tecnologia na aprendizagem são necessárias mais do que nunca, mas estão em falta.  Quando a evidência vem apenas das próprias empresas de tecnologia, existe o risco de ser tendenciosa.

  1. É sustentável?

O ritmo acelerado da mudança na tecnologia está pressionando os sistemas educacionais para se adaptarem. A alfabetização digital e o pensamento crítico são cada vez mais importantes, principalmente com o crescimento da IA ​​generativa. Dados adicionais anexados ao relatório mostram que esse movimento de adaptação já começou: 54% dos países pesquisados ​​definiram as habilidades que desejam desenvolver para o futuro. Mas apenas 11 dos 51 governos ​​têm currículos para IA.

Além dessas habilidades, a alfabetização básica não deve ser negligenciada, pois também é fundamental para a aplicação digital: alunos com melhores habilidades de leitura têm muito menos probabilidade de serem enganados por e-mails de phishing (golpes na internet).  Os professores também precisam de treinamento adequado, mas apenas metade dos países atualmente possui padrões para desenvolver suas habilidades em TIC. A sustentabilidade também requer uma melhor garantia dos direitos dos usuários de tecnologia. Hoje, apenas 16% dos países garantem a privacidade dos dados na educação por lei. Uma análise descobriu que 89% dos 163 produtos de tecnologia educacional podiam pesquisar crianças. Além disso, 39 dos 42 governos que oferecem educação online durante a pandemia promoveram usos que “arriscaram ou infringiram” os direitos das crianças.


Pois vamos às experiências recentes de regulação da tecnologia nas escolas brasileiras. Na última semana, assistimos ao vexame do governo do Estado de São Paulo que instalou equivocadamente um app nos celulares dos professores e responsáveis pelos alunos da rede pública sem o consentimento dos próprios. Vimos também a tentativa de digitalização dos livros didáticos nas escolas do mesmo Estado de SP, como se isso fosse sinônimo de educação de qualidade e adequação às tecnologias de educação e como se todas as escolas tivessem estrutura para lidar com a digitalização de imediato. Pouco depois, o governo voltou atrás. A pasta da Educação está com um empresário do ramo de tecnologia e pelo menos 5 aplicativos passaram a ser obrigatórios nas salas de aula, além de novas métricas a serem atendidas. 

No Rio de Janeiro, um decreto do prefeito Eduardo Paes proibiu o uso de celulares nas salas de aula. O celular tem que ficar na mochila, desligado ou no modo silencioso e só pode ser usado com permissão dos professores para trabalhos pedagógicos. A medida parece certeira para evitar a distração durante as aulas, mas me preocupa que o professor seja o fiscalizador desta legislação. Pelo texto, “os professores poderão advertir os alunos, cercear o uso dos dispositivos eletrônicos em sala de aula e acionar a equipe gestora da unidade escolar”. Além da falta de pessoal a “ser acionada” na escola pública brasileira, qual professor vai comprar essa briga numa sala de 30, 40 adolescentes?   E a gente bem sabe, proibido é mais gostoso. 

Diante desses dois últimos fatos, me chega mais potente a afirmação do diretor geral da Unesco Audrey Azoulay de que as conexões online não substituem a interação humana. E fica evidente que ainda nos escapa, no Brasil, a verdadeira possibilidade de revolução educacional, crítica, democrática e por consequência, a educação midiática ou digital. O cerne do problema não me parece contemplado até então. Da grosseira digitalização de material escolar (que passará a ser desenvolvido pelos tecnocratas do governo paulista) a uma simples proibição de celular durante a aula, não estamos tratando profundamente das implicações da tecnologia na educação. 

O governo federal abriu consulta pública sobre o tema e há expectativa de que haja avanços consistentes para orientar as escolas neste sentido, preparar professores, responsáveis e alunos para o uso consciente, produtivo mas também prazeroso da tecnologia no aprendizado. Começar pela igualdade ao acesso de qualidade é um bom primeiro passo. No final de 2022, 3,4 mil escolas no país (2,5%) não tinham acesso a rede de energia elétrica, 9,5 mil (6,8%) não dispunham de acesso à Internet e 46,1 mil (33,2%) não possuíam laboratórios de informática, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

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Ana d´Angelo

Jornalista, editora do *desinformante, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, mãe do Zé.

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