A partir do dia 1º de agosto, os produtos brasileiros importados pelos Estados Unidos sofrerão uma sobretaxa de 50%. A decisão econômica foi anunciada ontem (9) pelo presidente dos EUA Donald Trump em carta enviada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trump afirmou que a medida é uma resposta, em parte, às decisões judiciais brasileiras sobre plataformas digitais norte-americanas e como a Justiça está lidando com o ex-presidente Jair Bolsonaro, reacendendo um debate sobre soberania nacional e redes sociais.
Na carta, o republicano afirma que o tarifaço é “devido em parte aos ataques insidiosos do Brasil às eleições livres e aos direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos”. Trump também foi categórico ao dizer que as decisões da Suprema Corte brasileira sobre plataformas eram “ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS”.
Apesar de não citar diretamente quais foram as decisões criticadas, nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal, principalmente por meio do ministro Alexandre de Moraes, vem pedindo a suspensão de plataformas (como o Rumble, em fevereiro deste ano, e o X, no segundo semestre de 2024) por descumprimento de ações judiciais. Pedidos de bloqueio de perfis, por compartilhamento de desinformação ou por ataques às instituições brasileiras, também foram feitos.
Além disso, o presidente justificou o aumento da tarifa com o argumento de que o Brasil adota barreiras comerciais elevadas contra os EUA, causando um desequilíbrio entre os dois países.
A medida veio dias após a realização da Cúpula dos BRICS, presidida esse ano pelo Brasil, grupo em que os EUA não faz parte. No evento, os países definiram compromissos para o desenvolvimento ético e responsável da Inteligência Artificial, defendendo uma governança global da tecnologia, tendo a inclusão, soberania e sustentabilidade como fatores chave.
Para Yasmin Curzi, professora da FGV Direito Rio e pesquisadora na Universidade da Virgínia (EUA), a decisão anunciada por Trump tem relação direta com a atuação do Brasil na presidência dos BRICS e com o avanço de uma agenda de cooperação tecnológica entre países do Sul Global. “Essa sobretaxa não pode ser dissociada do posicionamento recente do Brasil dentro do grupo, especialmente da defesa por uma política de inteligência artificial voltada à soberania digital e à inclusão”, afirma.
Trump apoia publicamente Bolsonaro
Ao longo dessa semana, Trump usou o perfil na rede Truth Social para apoiar publicamente o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), fazendo relação ao julgamento de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Na terça-feira (8), o republicano chegou a dizer que o Brasil estava fazendo “uma coisa horrível” no tratamento ao ex-presidente. Na quarta (9), Trump escreveu: “Deixem o grande ex-presidente do Brasil em paz. Caça às bruxas!”.
A embaixada norte-americana endossou o posicionamento do presidente, afirmando que Bolsonaro estava sofrendo “perseguição política”. Em carta enviada pela assessoria, publicada pela revista Exame, a embaixada escreveu: “Jair Bolsonaro e sua família têm sido fortes parceiros dos Estados Unidos. A perseguição política contra ele, sua família e seus apoiadores é vergonhosa e desrespeita as tradições democráticas do Brasil. Reforçamos o posicionamento do presidente Trump”.
Bolsonaro é um dos réus julgados pelo STF por tentativa de golpe de estado que culminou com os ataques do 8 de janeiro. O ex-presidente e outras sete pessoas são acusadas de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, organização criminosa, dano qualificado e destruição do patrimônio tombado. Ministros do STF e a Procuradoria-Geral da República (PGR) destacaram que a disseminação de notícias falsas e desinformação foi determinante para os ataques de 8 de janeiro.
Na avaliação de Curzi, o tarifaço de Trump representa um aceno político claro à direita brasileira, especialmente a Jair Bolsonaro. Para ela, interessa aos Estados Unidos ter um aliado ideológico no comando do país, alguém disposto a flexibilizar contratos, licenças e acordos estratégicos que favoreçam diretamente os interesses norte-americanos.
Ela lembra que o Brasil é hoje um dos principais exportadores de minerais críticos para a indústria tecnológica dos EUA e diante desse cenário eles “têm buscado alcançar uma soberania tecnológica e industrial a partir do movimento de cooperação com os outros países do Sul Global”, conclui.
Ação contra Moraes corre na justiça dos EUA
A tensão entre a Justiça brasileira e os Estados Unidos não é de hoje e vem escalando nos últimos anos. Em fevereiro deste ano, ao ser banido no Brasil por descumprir ordens judiciais, o Rumble, plataforma de vídeos popular entre conservadores, entrou com uma ação num tribunal norte-americano junto com a Trump Media – empresa de mídia do presidente republicano – contra o ministro Alexandre de Moraes.
A ação, movida na Flórida no dia 20 de fevereiro, afirmava que as ordens do ministro de bloquear o perfil de Allan dos Santos violavam a soberania dos EUA e a constituição norte-americana. O diretor-executivo do Rumble, Chris Pavlovski, chegou a escrever no perfil do X uma mensagem em português para Moraes, afirmando que a empresa não cumpriria “ordens ilegais”. “Nos veremos nos tribunais”, concluiu o executivo.
Na época, o professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e advogado Francisco Brito Cruz destacou que as ações iniciadas pelo Rumble tentavam criar uma pressão para legitimar o discurso político da plataforma e constranger o judiciário brasileiro. “É uma tentativa da plataforma de criar um conflito jurisdicional para que ela tenha mais condições de ter uma posição melhor em relação à Justiça brasileira”, comentou.
Na última segunda-feira, o tribunal da Flórida intimou novamente o ministro brasileiro. Caso receba o documento, Moraes terá 21 dias para responder a um dos advogados citados no documento ou será julgado à revelia. A Advocacia Geral da União (AGU) está preparando a defesa do ministro, como noticiado pelo jornalista Leonardo Sakamoto.
Lula reage falando de soberania nacional
Ao rebater as acusações feitas por Donald Trump, o presidente Lula reforçou que o Brasil “é um país soberano com instituições independentes” e que não aceitará tutelas estrangeiras. Em nota oficial, publicada no X, ele destacou que decisões judiciais relacionadas a investigados por tentativa de golpe de Estado cabem exclusivamente à Justiça brasileira.
No centro da resposta está a defesa da legislação nacional sobre o funcionamento de plataformas digitais. “Para operar em nosso país, todas as empresas nacionais e estrangeiras estão submetidas à legislação brasileira”, afirmou. “No contexto das plataformas digitais, a sociedade brasileira rejeita conteúdos de ódio, racismo, pornografia infantil, golpes, fraudes, discursos contra os direitos humanos e a liberdade democrática.”
O presidente também desmentiu uma das principais alegações econômicas feitas por Trump. Na nota, Lula classificou como falsa a afirmação de que os Estados Unidos acumulam déficit comercial com o Brasil. “As estatísticas do próprio governo dos Estados Unidos comprovam um superávit desse país no comércio de bens e serviços com o Brasil da ordem de 410 bilhões de dólares ao longo dos últimos 15 anos”, escreveu.
Lula concluiu o pronunciamento exaltando a soberania nacional. Em outra postagem na manhã desta quinta-feira (10), o perfil do presidente no Instagram trouxe uma imagem com os dizeres: “Brasil soberano”. A soberania nacional é um tema que está ganhando destaque nos embates e tensões entre a justiça brasileira e as empresas de plataformas digitais norte-americanas.
No campo prático, o Planalto já articula as frentes de reação. A primeira é jurídica: o governo pretende acionar a Lei de Reciprocidade Econômica, que autoriza retaliações comerciais em caso de medidas unilaterais, embora o decreto que regulamente essa resposta ainda não tenha sido publicado.
A segunda é econômica: Lula convocará reuniões com setores mais impactados pela tarifa de 50% para traçar uma “linha de proteção”. Por fim, a terceira frente será diplomática e política: ministros Fernando Haddad (Fazenda), Mauro Vieira (Relações Exteriores) e Geraldo Alckmin (Indústria e Comércio Exterior) foram escalados para negociar diretamente com Washington, enquanto o governo responsabiliza, em pronunciamentos públicos, Bolsonaro e seus aliados pela crise comercial.
Nas redes, tarifaço acirra polarização
O posicionamento de Lula também ecoou fortemente nas redes sociais, que rapidamente se tornaram palco de uma nova batalha política. De um lado, apoiadores do governo passaram a denunciar o que chamam de “custo Bolsonaro”, responsabilizando o ex-presidente e, sobretudo, seu filho Eduardo Bolsonaro – atualmente nos Estados Unidos – pela retaliação anunciada por Donald Trump. Do outro, perfis bolsonaristas tentaram emplacar a ideia de que as tarifas seriam consequência direta do “autoritarismo” do Supremo Tribunal Federal e das posições externas do governo Lula.
A disputa ganhou forma por meio de hashtags como “Culpa é do Lula”, “Soberania” e “Eduardo Bolsonaro”, que chegaram aos trending topics do X (antigo Twitter). Enquanto a esquerda denunciava traição e cobrava a prisão de Eduardo, a direita passou a pedir o impeachment de Lula e do ministro Alexandre de Moraes.
A polarização também se expressou visualmente: a circulação de memes e imagens geradas por inteligência artificial tem sido intensa, com uso político estratégico para reforçar narrativas de ambos os lados.