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acervo pessoal

maio 27, 2024 | Pontos de Vista

STF reconhece assédio judicial ao jornalismo, ainda que com 60 anos de atraso

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Há 24 anos, o repórter fotográfico Alex Silveira cobria, normalmente, uma manifestação de professores na capital paulista, quando um tiro de borracha atingiu seu olho esquerdo, cegando-o quase que imediatamente. A foto de Caio Guatelli, mostrando Alex com a mão no olho, ensanguentada, é de uma potência avassaladora. 

Em novembro de 2023, neste mesmo espaço, falamos sobre o assédio judicial contra jornalistas e como esse fenômeno cresce exponencialmente na nação dos Tupis. O artigo titulado “Papel, caneta e assédio judicial” arrazoa a mudança de instrumento daqueles que desejam censurar a produção jornalística e evitar que informações e discussões que lhe desagradam ganhem lume na imprensa.

Os tiros mirados na cabeça de jornalistas ainda é uma práxis que ocorre, seja na zona de guerra, por parte de soldados Israelenses que atiram, propositadamente, para matar repórteres árabes que cobrem o confronto, como no caso do bombardeiro covarde ao veículo que os jornalistas identificados Al Dahdouh e Mustafa Thuraya[1] trafegavam, ou daqueles que cobrem as eleições mexicanas,[2] mas também nos rincões do Brasil.

Felizmente, a sociedade brasileira não mais tolera violência física contra a imprensa e quem se valia deste instrumento com frequência, observa o tiro sair pela culatra.

Ocorre que os desejos censores estão incrustados no espírito da nação. Carlos Eduardo Lins da Silva, em 1991, já alertava: “censura para as ideias dos outros e liberdade para as minhas parece ser o estranho conceito de liberdade de imprensa que permeia a sociedade brasileira de alto à baixo, da esquerda para a direita” (SILVA, 1991, p. 98).  

Daí que em um Estado Democrático de Direito em que o Poder Judiciário vira o cerne das lides[3], aos desejosos censores resta o acionamento da Justiça para ver valer seus anseios de tolher a divulgação de uma informação.

Fazendo uma anedota com o esporte mais amado do Brasil, as leis de difamação e os princípios de proteção à honra e à imagem são a bola. O campo, o Poder Judiciário. O atacante, o autor da ação. O goleiro é o jornalista ou o veículo. O juiz, o árbitro que valida ou não o gol.

A grande questão que a doutrina vem se debruçando desde o julgamento paradigmático de New York Times v. L.B. Sullivan pela Suprema Corte Americana[4] em 1964 é se o uso do Judiciário como forma de resposta às matérias é válido e em que medida seu acionamento é justificado.

William Brennan, juiz da Suprema Corte, ao resumir a visão da Corte, disse que “consideramos este caso como o pano de fundo do compromisso nacional de que o debate de assuntos públicos deve ser desinibido, robusto e amplo e que ele pode incluir ataques veementes, cáusticos e às vezes desagradáveis ao governo e a agentes públicos.”

Naquele julgado, ficou definida a tese de que uma reportagem só poderia gerar reparação pela lei de difamação se ficasse provado que o repórter agiu com malícia real ou vontade de publicar uma informação por ele sabidamente falsa ou manipulada e com intenção de prejudicar os interesses e a imagem do personagem.

Supremo Tribunal Federal precisou de 60 anos para encarar a matéria

Foram necessários 60 anos para que o Supremo Tribunal Federal Brasileiro encarasse a mesma matéria. Nas ADIs. 6792 e 7055 o STF se deparou com pedidos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para que reconhecessem o fenômeno do assédio judicial e tomassem medidas concretas para sufragá-los.

Após longa campanha dos órgãos representativos, a Corte julgou o tema na semana passada, reconheceu este fenômeno, e fincou a seguinte tese com repercussão geral:

  • 1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.
  • 2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio.
  • 3.⁠ A responsabilidade civil de jornalistas ou órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).

No segundo e terceiro pontos, o STF acertou grandiosamente. Primeiro, a principal característica do assédio judicial é a ação orquestrada de grupos de interesses que, organizados política, religiosa ou na sociedade civil, lastreavam dezenas de ações em comarcas diversas, regiões de difícil acesso e que nada tinham a ver com o objeto principal das ações. No Mato Grosso do Sul políticos, no Paraná Juízes e Promotores, Brasil afora colecionadores de armas e membros da Igreja Universal.

É verdade que em tempos de internet e possibilidade de julgamento virtuais, o prejuízo com as distribuições em várias comarcas se arrefece. Porém, como são ações orquestradas, a chance de decisões dissonantes sobre mesmo conteúdo é presente, uma vez que 50, 60 juízes diversos decidindo um mesmo caso aumenta, sobremaneira, a possibilidade de condenação e absolvição simultaneamente.

Note-se que muitas ações são em tutela de direitos de terceiros ou de um ataque à honra abstrata, como colecionadores de armas que se sentem ultrajados por críticas ao libera geral promovido pelo Governo Jair Bolsonaro.[5]

A reunião no domicílio do réu diminui os gastos e deslocamentos ao mesmo tempo que a concentração em um juízo universal elide a chance de decisões incompatíveis. Esse procedimento já ocorre em ações de improbidade administrativa, não é um invencionismo pró-imprensa, mas um freio de arrumação no uso indiscriminado e predatório dos Juizados Especiais Cíveis.

O terceiro ponto é proteção importante, pois deixa ainda mais claro o que a doutrina e a jurisprudência do próprio STF já sustentavam: a liberdade de imprensa é um direito fundamental preferencial sobre outros, como o à imagem e à honra. Sendo assim, para sua mitigação é necessário que o agente ou aja com vontade de causar danos à imagem de terceiros, ou publica uma informação de qualquer jeito, sem apurar, ouvir o outro lado e praticar os atos que a ética jornalística requer.

Talvez a questão mais delicada seja a definição que o STF deu para o termo assédio judicial. Essa alcunha foi uma forma de abrasileirar os termos chilling effect e SLAP “Strategic Lawsuits Against Public Participation.” Proposta pela advogada e jornalista Tais Gasparian em artigo de 2020 no jornal Folha de S. Paulo. Tais foi a advogada da Abraji nos casos julgados.

À própria Folha ela explicou a escolha do termo: “A expressão recebeu muitas críticas, algumas delas do Poder Judiciário. Queriam tirar a palavra judicial para chamar de assédio processual. Defendi muitas vezes, e muitas pessoas se somaram nessa defesa, que a palavra judicial tinha necessariamente que estar na expressão, porque era por intermédio do Judiciário que era feito o assédio. Era no quintal da magistratura. Sem contar que muitas vezes são os próprios magistrados ou outras figuras do Poder Judiciário que acabam protagonizando esse assédio judicial.”[6]

Porém, e talvez em função das restrições de uma ADI e de pedidos judiciais, as ações incrustaram na definição do assédio judicial “o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa”, como ficou na tese.

Esse procedimento é um elemento do assédio judicial, mas não o define. Pode – e normalmente o é – ocorrer o assédio com o ajuizamento de uma única ação com o objetivo de se vingar ou de dar um recado ao jornalista de não mexer com certos personagens. Rubens Valente sofreu assédio judicial de Gilmar Mendes, pelo livro Operação Banqueiro, em uma singular ação indenizatória que resultou em condenação para reparar os “danos” em R$ 400 mil. Não é preciso dezenas de processos ou ações em comarcas distintas para o assédio existir.

Melhor seria se o STF tivesse adotado as definições de Eric Barendt[7] ou Frederick Schauer[8], pesquisadores americanos que, há mais de 30 anos, pesquisam sobre chilling effects, termo oriundo de New York Times v. Sullivan.

Vamos adotar, aqui, a interpretação de Thalles Leba, que muito bem serve ao nosso contexto, sobre o chilling effect: “a dissuasão sobre a liberdade de expressão e de Imprensa, exercida de maneira legítima, pelo medo causado a partir do risco de incidência de consequências jurídicas relacionadas aos mecanismos de responsabilização existentes no ordenamento jurídico, como multas, responsabilidade civil ou responsabilidade penal.

O conceito do STF não resolve o problema, pois pode gerar interpretações equivocadas nas instâncias iniciais sobre como caracterizar o assédio judicial, limitando-a a experiências pontuais que não são o grosso deste fenômeno. Também, permite adaptações dos que pretendem se valer do mecanismo para continuar assediando jornalistas, o que não mudará. O assédio judicial em um país que nasceu sob um decreto que proibia a impressão de qualquer escrito, até mesmo dos que elogiavam a Corte, não será tolhido de uma hora para outra, mas mecanismos que dificultem sua mantença, ainda mais quando surgem do STF, trazem um afago a um país que de tempos em tempos volta à tradição fundante da censura, autocensura e do uso do Estado como instrumento de tolher a liberdade de imprensa.

O julgamento é um importante passo civilizatório, ainda que 60 anos após a Suprema Corte o fazer, e mostra um freio de arrumação do STF após o péssimo exemplo do julgamento do caso Diário de Pernambuco, que estendeu a responsabilidade por afirmações feitas por entrevistados para os entrevistadores.

REFERÊNCIAS:

BARENDT, Eric; LUSTGARTEN, Laurence; NORRIE, Kenneth; STEPHENSON, Hugh. Libel and the Media: the chilling effect. Oxford: Clarendon Press, 1997.

BELAKOVA, Nikola. Defamation, privacy and freedom of expression. A socio-legal study of the interplay between the Slovak personality/goodwill protection regime and journalism, 1996- 2016. PhD thesis, London School of Economics and Political Science, 2018.

JONES, Kathy. A guerra entre Israel e Gaza faz com que os assassinatos de jornalistas em 2023 atinjam um recorde devastador. CPJ. Disponível em: https://cpj.org/pt/reports/2024/02/a-guerra-entre-israel-e-gaza-faz-com-que-os-assassinatos-de-jornalistas-em-2023-atinjam-um-recorde-devastador/#:~:text=Em%20janeiro%20de%202024%2C%20os,o%20carro%20em%20que%20viajavam., acesso em 27 mai. 2024.

LEBA, Thalles Furtado Leba. Liberdade de expressão, liberdade de imprensa e o problema do “chilling effect”. 2018. 234 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

PAGANOTTI, I.; MARQUES, F. E. de S. Proteção da imagem do (e no) STF: autodefesa, difamação, desinformação e direitos comunicacionais no caso do livro “Operação Banqueiro”. RuMoRes[S. l.], v. 16, n. 32, p. 58-79, 2022. DOI: 10.11606/issn.1982-677X.rum.2022.201871

SCHAUER, Frederick. Fear, Risk and the First Amendment: Unraveling the Chilling Effect. Faculty Publications. Paper 879, 1978.

SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus, 1991.


[1] https://cpj.org/2024/01/cpj-calls-for-probe-into-whether-hamza-al-dahdouh-and-mustafa-thuraya-were-targeted-in-drone-strike/

[2] https://www.rfi.fr/pt/mundo/20230709-jornalista-do-di%C3%A1rio-la-jornada-assassinado-no-m%C3%A9xico

[3] Lide aqui é usada como “conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida”, conceituação de Francesco Carnelutti para a razão de ser da intervenção judicial, através de um processo, em um antagonismo de vontades. O Processo Civil só age quando há uma lide.

Explica Carnelluti que interesse é a “posição favorável para a satisfação de uma necessidade assumida por uma das partes” e pretensão, “a exigência de uma parte de subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio”. THEODORO JUNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil. 37 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 31

[4] Consiste no julgamento mais importante da Corte Americana sobre proteção da imprensa, onde se modificou a então jurisprudência americana quanto à proteção da liberdade de expressão. https://supreme.justia.com/cases/federal/us/376/254/

[5] https://www.conjur.com.br/2022-nov-05/associacao-processa-jornais-noticiam-aumento-armas/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/05/decisao-do-stf-nao-encerra-assedio-judicial-a-jornalistas-mas-dificulta-diz-advogada.shtml

[7]  “jornalistas, particularmente aqueles experientes, estão bem conscientes do regime legal de difamação em que trabalham e, portanto, moldam suas pesquisas e seus escritos para atender aos requisitos da lei”[7] (BARENDT, 1997, p. 68).

[8] Frederick Schauer conceitua o chilling effect como algo que ocorre “quando indivíduos que procuram se envolver em atividades protegidas pela primeira emenda são dissuadidos de fazê-lo por regulamentação governamental não dirigida especificamente a essa atividade protegida.”[8] (SCHAUER, 1978, p. 693).

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Bruno Henrique de Moura

Advogado formado na Universidade de Brasília, mestrando na Universidade de São Paulo onde pesquisa liberdade de expressão e violência de Estado contra jornalistas. É presidente da Associação Brasiliense de Cronistas Desportivos e Vice-Presidente da Comissão Disciplinar Nacional do STJDU.

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