“Em uma democracia, ninguém deve temer retaliação por apenas expressar uma opinião, uma crença, um pensamento não endossados por quem ocupa posição de autoridade, ou mesmo por expor fato que o desagrade, e o Estado constitucional não admite sejam as ações do Estado orientadas pela lógica do pensamento ideológico. Não se pode admitir que a imprensa seja onerada com ônus excessivos às suas atividades, sob pena de sofrer um efeito inibitório, deletério ao ambiente de livre comunicação, em razão do elevado risco decorrente do exercício da sua atividade. ‘Paixões e medos’, na expressão do Justice Black, não constituem fundamento suficiente para se impor restrições aos direitos individuais.”
O parágrafo acima poderia, muito bem, ser escrito por algum autor clássico em defesa da liberdade de expressão como os clássicos Tocqueville, Stuart Mil, Adam Smith, ou os mais modernos Eric Barendt e Bollinger. Poderia, também, ser trecho de alguma manifestação da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) ou sustentada por advogados em defesa dos direitos dos jornalistas. Mas não é de nenhum destes.
Nos últimos anos, cresceu exponencialmente o uso de instrumentos judiciais e jurídicos para mitigar a produção jornalística através do medo, do receio ou da violência psicológica.
Violência pode ser entendida de várias formas, mas usemos duas leituras, a primeira da ONU, para quem “o uso intencional de força física ou poder, por ameaça ou ação, contra si mesmo, outra pessoa ou um grupo ou comunidade, que resulta ou tem alta probabilidade de resultar em ferimento, morte, sofrimento psicológico, mal desenvolvimento ou privação”, e a segunda de Hannah Arendt, segundo a qual a violência se trata de um fenômeno de índole cultural que advém de tentativas de tirar a máscara da hipocrisia da mentira e da consciência de uma injustiça praticada.[1]
Michel Foucault separa a violência irrestrita de Poder e cria um jogo complicado, complexo, que imbrica relações de dominação, liberdade, repressão que, em uma ou outra medida, vão sendo testados e estressados nas relações de Estado/Indivíduos, dominantes e dominados. E vaticina, com seu brilhantismo costumeiro: “a racionalidade é o que programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade mesmo nas suas formas mais violentas”[2].[3]
Jornalistas trabalham com palavras, sejam escritas, faladas ou televisionadas. Sem o instrumento da palavra, não têm condições de expressar informações, fatos e opiniões. Mesmo quando acompanhadas de imagens, para contextualizar ou traduzir uma leitura sobre o visual, o jornalista precisa de palavras. Eugênio Bucci chama este espaço da palavra como cerne da comunicação de instância da palavra impressa, a qual, não negamos, dá espaço para o que o próprio Bucci chama instância da imagem ao vivo.[4]
Mas os locus de poder ainda operam sobre a lógica da palavra impressa, sob a qual “a lei fala por letras, não por imagens – e isto até hoje. No mundo jurídico, quem dirige a representação é o signo abstrato, ‘a razão sem paixão’, como quis Aristóteles – segundo o qual ninguém lograria condenar um assassino à prisão se não houvesse lei escrita, publicada previamente, descrevendo o tipo penal do homicídio. Sem palavras e, mais ainda, sem autoridade da palavra da lei, não há normatividade possível. A Justiça portanto, duvida das imagens, a pontoa de a deusa Têmis ter os olhos vendados”.[5]
O jurídico e o jornalístico são primos, às vezes distantes, às vezes muito próximos. E sobre eles operam estruturas de poder e de dominação, quando não de violência. Agradar a fonte, explorar algo ruim feito por um desafeto, refrescar memórias, ignorar pontos de vistas, vieses, contextos, tudo isso é do jogo jornalístico e, muitas vezes, jurídico.
Na ideação destas duas esferas esses efeitos não poderiam operar. E normalmente não operam. O dia a dia das operações jornalísticas e jurídicas não estão viciadas, nem interessadas, nas relações de poder ou dominação, e é sobre esse dia a dia que se vê o uso equivocado de instrumentos de violência para afastar matérias fidedignas e sem interesses escusos.
Na manhã de 27/11/2023 o projeto CRTLX DA Abraji[6], que monitora ações judiciais contra jornalistas em decorrência de seu ofício, marcava 6.013 ações judiciais de diversos entes, com destaque para O MDB e Ministério Público Eleitoral (cada um com 43 ações), para Amazonino Mendes (35 processos) – secular político do Amazonas – do ex-presidente Jair Bolsonaro (33 processos) e da Coligação Frente Muda Rondônia (29 processos).
Não são casos isolados, mas paradigmas de como agentes de Poder passaram a lidar com matérias que causam desconforto à imagem.
Antes, a lei da bala e do poder econômico exsurgia com maior presteza. E ainda são assim, a depender do personagem com papel e caneta. De acordo com o relatório anual Killing the Messenger, de janeiro de 2022, ao menos 85 profissionais de imprensa de todo o mundo morreram no ano passado.
Mas hoje, membros do Poder viram que o Judiciário tem o condão de ser um grande parceiro na opressão contra reportagens e repórteres e, os casos de maior impacto, passaram a ter membros do Poder Judiciário na frente do movimento que, os americanos há anos chamam de chilling effect e o Brasil vem adotando o nome de assédio judicial.
A que serve a condenação de uma jornalista à prisão por crimes contra a honra por ter cunhado o termo estupro culposo para definir uma tese levada à frente pelo MP?[7] Não só a que serve, mas qual o recado que este episódio perpassa aqueles que se atreverem a desafiar a boa imagem e as atitudes de membros do Poder Judiciário?
De que maneira um jornalista agirá se não pode, nem mesmo, aludir que o presidente da república tem relações espúrias com personagens identificados como traficantes de armas que possuem registro de colecionador de armas? E, como ficará este jornalista que responde à sessenta e cinco ações idênticas, aventadas por pessoas que se dizem CACs e que ficaram ofendidas pela relação que o jornalista fez em um programa do patamar do jornal da TV Cultura?
Felizmente, no caso de Ubiraci Cerqueira Santana, valeu a máxima apontada, no primeiro parágrafo, pela ministra Rosa Weber no julgamento da ADI 6792, na qual ela proferiu voto dando interpretação conforme a dispositivos legais usualmente manejados contra jornalistas em efetivo exercício da liberdade de expressão e de imprensa. O julgamento foi interrompido por pedido de vistas do Min. Luís Roberto Barroso assim que assumiu a presidência da Corte e não tem previsão de ser retomado.
Já a jornalista Schirlei Alves foi condenada a 1 (um) ano de prisão em regime aberto e na obrigação de R$ 400 mil em indenizações. Cabe recurso dos dois processos.
O voto de Rosa Weber traz um alento a um problema que ganha contornos cada vez mais graves. A proteção à honra, à imagem e à privacidade de indivíduos públicos não pode ser desconsiderada e, muitas vezes, personagens são alvos de interesses espúrios e de publicações que pouco se importam com o interesse público, mas servem para favorecimento ilegal de um ou outro jogo de Poder.
Mas são exceções e um Estado Democrático de Direito, quando diante de conflito de interesses de índole constitucional deve prevalecer os mais liberais e que possuam interesses não apenas público, mas à democracia. É história que os instrumentos de repressão e coação, para atingir o controle do Poder falado por Foucault, atacavam as liberdades de expressão e imprensa como medidas iniciais de um processo de dominação. Não podemos ignorar que por trás de autoproteção, muitas vezes, estão contidas formas de tolher oposições e perpetua-se no Poder e pelo Poder. Daí a necessidade de mais visões como a de Rosa Weber e que a comunidade cívica brasileira pressione o Supremo Tribunal Federal para pautar a ADI 6792 e dar azo ao voto da então ministra relatora.
[1] Nesse sentido, SANTOS, S. G. B. O Conceito de Violęncia em Hannah Arendt: a Busca por um Lugar no Mundo 1998. Dissertaçăo de Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduaçăo em Filosofia, Universidade de Săo Paulo, Săo Paulo, 1998.
[2] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São Paulo: Martins, Fontes, 2010, p. 319.
[3] Ainda de Foucault sobre esta questão: O que há de mais perigoso na violência é sua racionalidade. Certamente, a violência é em si mesma terrível. Mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda na forma da racionalidade que nós utilizamos. Pretendeu- se que se nós vivêssemos em um mundo de razão, nós nos livraríamos da violência. O que é totalmente falso. Entre a violência e a racionalidade, não há incompatibilidade. Meu problema não é o de fazer o julgamento da razão, mas o de determinar a natureza dessa racionalidade que é tão compatível com a violência. (FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos – Vol. II – Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. 2ª ed. São Paulo: Forense Universitária, 2005).
[4] BUCCI, Eugênio. A superindústria do imaginário: como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 39-64.
[5] Op. Cit., p. 50.
[6]https://www.ctrlx.org.br/#/infografico/geral/estado/shData:1%2F2023,2%2F2023,3%2F2023,4%2F2023,5%2F2023,6%2F2023,7%2F2023,8%2F2023,9%2F2023,10%2F2023,11%2F2023,12%2F2023
[7] https://www.conjur.com.br/2023-nov-15/jornalista-e-condenada-a-prisao-por-difamacao-contra-juiz-e-promotor/