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jul 4, 2025 | Destaques, geral, Notícias

Responsabilização das plataformas pelo STF: o que dizem os especialistas?

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O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu no dia 26 de junho a análise sobre a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI). A Corte decidiu que a regra que condiciona a responsabilização civil de plataformas digitais ao descumprimento de ordem judicial específica já não é suficiente para proteger adequadamente os direitos fundamentais e a democracia no ambiente digital.

Ao fixar uma tese com repercussão geral, os ministros reconheceram a inconstitucionalidade parcial do dispositivo, decisão que altera de forma significativa o regime de responsabilidade das plataformas no Brasil e amplia a aplicação do Artigo 21 do MCI.

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Ouvimos pesquisadores, integrantes da sociedade civil organizada e os provedores de serviços digitais para entender quais questões positivas e pontos de atenção a tese do STF apresenta. Enquanto devido processo foi visto como necessário, vácuos regulatórios (como a falta de um órgão fiscalizador e ausência de clareza sobre os tipos de provedores) foram levantados. Veja mais detalhes abaixo.

Devido processo na tese é visto como positivo

Entre os pontos positivos apontados por especialistas na tese do STF está a inclusão expressa do dever de garantir o devido processo legal nas práticas de moderação de conteúdo pelas plataformas digitais.

Segundo a decisão, os provedores devem adotar mecanismos que permitam aos usuários ser informados sobre a remoção de seus conteúdos, conhecer os fundamentos da decisão e ter a chance de recorrer, além de publicar relatórios periódicos de transparência sobre suas ações.

Para o pesquisador Paulo Rená, do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), essa foi uma sinalização importante. “A decisão marca um primeiro passo relevante ao afirmar o devido processo como exigência na moderação. Mas ainda é insuficiente, pois não detalha quais são os elementos que o compõem”, explica. Segundo ele, o ideal seria que essa proteção fosse positivada em lei, com regras claras sobre notificações, prazos e direito ao contraditório.

Em nota, a Coalizão Direitos na Rede (CDR) também reconhece a inclusão do devido processo como um avanço, mas faz uma ressalva: ao delegar a implementação e definição dos critérios às próprias plataformas, por meio da autorregulação, o STF deixa lacunas importantes em aberto.

Quem fiscaliza? O vácuo regulatório após a decisão

A ausência de uma autoridade reguladora com atribuições claramente definidas para supervisionar o cumprimento das novas obrigações é uma das principais críticas ouvidas entre os estudiosos do tema. Para Bruna Martins, gerente de políticas públicas e advocacy da WITNESS, essa indefinição é um reflexo direto da origem judicial da decisão: “É compreensível que haja essa falha, já que o STF não tem competência para atribuir funções a órgãos do Executivo. Mas isso revela os limites do processo e deixa dúvidas sérias sobre quem será responsável por auxiliar o Judiciário na fiscalização desse novo regime”.

A mesma preocupação é compartilhada por Paulo Rená. Para ele, “há incertezas relevantes sobre como as medidas serão implementadas na prática, justamente pela ausência de um ente regulador que possa cobrar, por vias administrativas, o cumprimento das obrigações”.

A advogada Flávia Lefèvre, conselheira do Instituto Nupef, aponta que, embora os deveres estabelecidos pelo STF já encontrem respaldo no Código de Defesa do Consumidor, o problema persiste na falta de atuação firme dos órgãos existentes. “A Secretaria Nacional do Consumidor, por exemplo, já poderia estar cobrando essas obrigações há anos, mas tem sido complacente com as plataformas”, afirma.

Segundo ela, caberia ao STF, diante da indefinição, endereçar apelos formais a estruturas já existentes, como as Secretarias Nacionais do Ministério da Justiça e da Presidência da República, além da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e da PGR, todas mencionadas durante o julgamento, mas ausentes da formulação final da tese.

Risco de generalização preocupa especialistas

Os especialistas consultados trouxeram outro ponto recorrente de preocupação em relação à tese: a ausência de clareza sobre os diferentes tipos de provedores de aplicação existentes no ecossistema digital brasileiro. Embora a decisão se refira diretamente a redes sociais, mensageria privada, serviços de e-mail, videoconferência e marketplaces, há uma ampla gama de plataformas que não se encaixam perfeitamente nessas categorias e que podem ser indevidamente afetadas.

Francisco Venâncio, vice-presidente da Wikimedia Brasil, alerta que a estrutura colaborativa e descentralizada de projetos como a Wikipédia não foi considerada na formulação da tese.

“O maior risco é que o Judiciário passe a exigir da Fundação Wikimedia responsabilidades operacionais incompatíveis com a lógica comunitária do projeto, ou que se interprete que a moderação voluntária não atende aos critérios exigidos pela decisão”, afirma. Segundo ele, o funcionamento da Wikipédia já prevê mecanismos eficazes de moderação, mas é preciso cuidado para que a aplicação da tese não inviabilize sua operação.

A advogada Flávia Lefèvre vai além e aponta uma incoerência técnica nos próprios termos da decisão. Para ela, o STF deveria ter especificado com mais precisão os limites de aplicação do Artigo 19 nos casos de serviços protegidos pelo sigilo constitucional, como mensageria privada, e-mails e reuniões online fechadas. “A tese acabou abrindo margem para interpretações que podem colocar em risco o direito à intimidade e à privacidade dos usuários, ao não delimitar com clareza quando e como se aplica a responsabilização nesses contextos”, afirma. Ela também questiona o uso de termos vagos, como “redes artificiais de distribuição ilícitas”, sem indicar critérios técnicos para sua identificação.

Na mesma linha, Bruna Martins, critica o fato de plataformas de acesso ao conhecimento, como a própria Wikipédia ou mesmo o Registro “.br” – departamento do NIC.br responsável por registrar, manter e administrar os nomes de domínio com a terminação “.br” no Brasil –, não terem sido expressamente excepcionadas do novo regime. 

Para Paulo Rená “o risco é que, por falta de categorização, todos sejam tratados sob a mesma lógica de responsabilização, o que pode ser desproporcional e tecnicamente inviável em certos casos”, pontua.

Risco de censura privada 

Um dos pontos mais sensíveis levantados por especialistas após a decisão do STF diz respeito ao risco de uma exclusão excessiva de conteúdos pelas plataformas digitais. Em especial, diante da possibilidade de responsabilização sem a necessidade de ordem judicial ou notificação prévia em determinadas situações.

Para Flávia Lefèvre esse risco é real e imediato. “A tendência é que as plataformas adotem uma postura reativa, derrubando conteúdos por precaução para evitar punições e custos”, avalia. Ela destaca ainda um trecho específico da tese – o item 5.5 – segundo o qual, mesmo que o Judiciário determine posteriormente o restabelecimento de um conteúdo removido, a plataforma não será punida. “Essa cláusula funciona como um estímulo à retirada arbitrária de conteúdos, independentemente de sua legalidade”, alerta.

Bruna Martins enxerga o problema sob outra perspectiva, mas também aponta riscos. Para ela, a nova lógica imposta pelo STF, sobretudo no que se refere ao dever de cuidado aplicado a conteúdos ligados a crimes graves, cria um cenário em que as plataformas passam a ter o poder (e a obrigação) de interpretar quais conteúdos se encaixam nas hipóteses listadas.

“Isso pode levar à adoção de políticas mais restritivas ou até mesmo à proibição prévia de determinados temas, com receio de responsabilização futura. E esse poder interpretativo excessivo nas mãos das empresas não é desejável”, afirma.

Já o pesquisador Paulo Rená, reforça que o risco de censura privada dependerá da postura que cada plataforma decidir adotar diante do novo quadro. “Se as empresas agirem de forma mais resiliente e criteriosa, filtrando notificações com base no que de fato está previsto na tese, o impacto pode ser menor. Mas se optarem por uma atuação automatizada e temerosa, removendo qualquer conteúdo diante da menor dúvida, aí sim veremos uma escalada na restrição da liberdade de expressão nas redes sociais”, explica.

Esse alerta também tem sido feito por representantes do setor. A Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net), que representa empresas de serviços digitais e comércio eletrônico, divulgou uma nota pública em 3 de junho criticando o novo entendimento. Para a entidade, a responsabilização automática das plataformas, sem a mediação do Judiciário, abrirá precedentes perigosos para a censura privada, levando à remoção preventiva de conteúdos legítimos — inclusive diante de denúncias infundadas. Segundo a nota, o cenário gerará insegurança jurídica para educadores, criadores de conteúdo, jornalistas, pequenos negócios e milhões de usuários que dependem da internet para suas atividades diárias.

Plataformas demonstram preocupação com impactos

Embora adotem tom institucional e cauteloso, as manifestações de algumas das principais empresas de tecnologia afetadas pela decisão refletem preocupações com os efeitos jurídicos, econômicos e operacionais da nova interpretação do Artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Em nota enviada ao *desinformante, o Google destacou que o julgamento estabeleceu um “novo entendimento sobre responsabilidade civil para um grupo grande e diverso de plataformas de internet” e afirmou que a ampliação das hipóteses de remoção de conteúdo mediante notificação, especialmente no contexto do Artigo 21, está sendo analisada com atenção. A empresa afirmou ainda que as mudanças podem impactar a liberdade de expressão e a economia digital, e reiterou estar aberta ao diálogo.

Já a Meta, controladora do Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp, foi mais enfática ao comentar os riscos da decisão. “Estamos preocupados com as implicações da decisão do STF sobre a liberdade de expressão e as milhões de empresas que usam nossos aplicativos para crescer seus negócios e gerar empregos no Brasil”, declarou a empresa. Para a big tech, enfraquecer o Artigo 19 traz incertezas jurídicas e pode ter consequências negativas para a inovação e o desenvolvimento econômico digital, além de aumentar o risco de fazer negócios no país.

As plataformas TikTok e Kwai também foram procuradas, mas não responderam até o fechamento desta matéria.

E agora? O que esperar daqui pra frente

Com o encerramento do julgamento, os próximos passos dependem da publicação do acórdão pelo Supremo Tribunal Federal, o que deve ocorrer nos próximos dias. É esse documento que trará, oficialmente, os votos vencedores e vencidos, além da formulação final da tese com repercussão geral.

A partir dessa publicação, as partes envolvidas – como Google, Meta e os amicus curiae – poderão apresentar embargos de declaração, um recurso usado para pedir esclarecimentos ou apontar omissões e contradições no texto da decisão.

A tese ainda não especifica exatamente a data de início da sua aplicação, ponto que deve ser detalhado no acórdão. Mas, uma vez publicado e com o trânsito em julgado, os 14 itens definidos pelo STF passam a valer como referência obrigatória para tribunais e juízes de todo o país, sempre que estiverem em análise casos semelhantes.

Outro ponto relevante foi trazido pela advogada Flávia Lefèvre: segundo o artigo 52, inciso X da Constituição Federal, cabe ao Senado suspender, total ou parcialmente, a execução de uma lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, o que pode reforçar os efeitos práticos da decisão no caso em análise.

Além disso, como o próprio STF reconheceu ao final da tese, a palavra final sobre o regime de responsabilidade das plataformas ainda pertence ao Congresso Nacional. Caso o Legislativo retome o debate e aprove uma nova legislação sobre o tema, algo que os ministros e especialistas vêm cobrando, as diretrizes estabelecidas pela Corte poderão ser modificadas, ampliadas ou até superadas, desde que respeitados os princípios constitucionais.

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