Antes de entender o que era internet, foi a palavra de outra mulher negra que me deu acesso. Foi nos corredores do Instituto Federal da Bahia, ainda no ensino médio, que ouvi pela primeira vez o nome de Luíza Mahin. Um professor pediu que pesquisássemos sobre ela, já que ninguém conhecia. Inclusive eu. Mas bastou uma busca rápida na internet para que uma mulher negra heroína, estrategista dos levantes negros na Bahia do século XIX, saltasse da invisibilidade para minha tela.
Quanto mais eu lia sobre Luíza, mais crescia em mim a indignação pelo apagamento da sua história. Naquele momento, algo girou por dentro, ainda sem nome. Hoje sei que era o começo de uma trajetória de reencontro com a minha própria identidade, impulsionada pelos saberes que circulam, mesmo entre as brechas, nas redes digitais. O que começou como uma pesquisa escolar virou faísca de um caminho que me ensinaria que as tecnologias também são território de luta e de construção de memória.
Já na universidade, mergulhada nas palavras de Sueli Carneiro, entendi que esse apagamento não era acaso, mas projeto., E e que resistir a ele também exige método. Junto a outras mulheres negras, nas salas, nos coletivos, nos blogs, nas lives e nos grupos das redes sociais, fui formando meu vocabulário político: feminismo negro, interseccionalidade, racismo algorítmico, aquilombamento digital. Mas antes de qualquer termo, foi o gesto coletivo de outras mulheres negras, na internet e fora dela, que me ofereceu cuidado, conhecimento e coragem para estar aqui.
Para muitas meninas negras como eu, o acesso à internet não foi apenas uma janela para o mundo, foi um espelho. Nos vimos entre textos, fóruns, vídeos e conteúdos diversos produzidos por blogueiras negras, que desafiavam o que nos ensinaram a ser. E ali, no encontro entre as nossas histórias e a possibilidade de narrá-las com nossas próprias palavras, começamos a hackear as imagens de controle que tentam nos silenciar.
Se hoje escrevo sobre mulheres negras e tecnologias, é porque antes de qualquer especialização técnica, me tornei usuária de uma rede ancestral de saberes que sobrevive à margem e que, mesmo com todas as limitações, transforma a tecnologia em ferramenta de reexistência. Para mim foi assim, mas não sei se seria possível quantificar o quanto a produção negra na internet ajudou a construir autoestima e senso de pertencimento para tantas outras pessoas como eu. O que sei é que há uma força coletiva pulsando nesses espaços.
Entre brechas e encruzilhadas
Falar do uso de tecnologias por mulheres negras é, antes de tudo, tensionar a própria ideia de tecnologia. Não estamos apenas usando ferramentas, estamos reprogramando as lógicas de um sistema que não foi feito para nos incluir. Mesmo diante de brechas digitais profundas, de acesso, de uso e de produção, seguimos inventando saídas.
Muitas de nós ainda enfrentam dificuldades básicas para acessar a internet ou possuir equipamentos adequados (a brecha do acesso); outras lidam com limitações no letramento digital, que impedem o uso pleno das ferramentas disponíveis (a brecha do uso); e há, ainda, a baixa presença de mulheres negras em cursos de computação, laboratórios, cargos de poder e no desenvolvimento de tecnologias propriamente ditas (a brecha da produção).
Um exemplo marcante dessa transgressão aconteceu no dia 18 de novembro de 2015, quando cerca de 50 mil mulheres negras de todo o Brasil se reuniram em Brasília na Marcha das Mulheres Negras. Segundo Thiane Barros (2020), esse foi talvez o primeiro grande levante do país a articular os saberes tradicionais do correio nagô com as tecnologias digitais contemporâneas, criando um circuito potente de mobilização e comunicação que atravessou territórios, redes e gerações.
Três anos antes, em 2012, nascia o coletivo Blogueiras Negras, um espaço colaborativo para que mulheres negras escrevessem, lessem e se vissem nas palavras umas das outras. Essa plataforma se tornaria um dos maiores marcos do ciberativismo negro brasileiro, desafiando a lógica da sub-representação e do silenciamento.
Hoje, esse movimento se desdobra em encruzilhadas múltiplas e inspiradoras: do DataLabe ao Desabafo Social, do GatoMídia à InfoPreta, do Instituto Mídia Étnica à Olabi/PretaLab, passando pela potência do OxenTI Menina e pela Rede Negra sobre Tecnologias e Direitos Digitais, onde tantas companheiras que admiro e acompanho seguem desbravando caminhos.
Tudo isso é mais do que apropriação: é reexistência. É transformar a tecnologia em estratégia de vida, continuidade e afirmação. E ao fazer isso, mulheres negras também desafiam a ideia de que só é tecnológico o que é moderno, caro ou importado. A nossa história está cheia de tecnologias ancestrais, renovadas a cada geração, para que possamos continuar existindo. Nominar essas práticas como tecnologia é valorizar os saberes tradicionais e, ao mesmo tempo, reivindicar nosso lugar como produtoras de conhecimento.
O agora: potência negra em movimento
Evocar o que tem sido pensado e construído por mulheres negras é, para mim, mais do que um exercício de memória: é uma prática de continuidade. Neste 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, me debruço sobre o presente com olhos cheios de admiração e compromisso. Cada nome que cito aqui carrega não apenas conquistas, mas também caminhos possíveis, futuros em construção.
Estamos às vésperas da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, marcada para 25 de novembro de 2025, em Brasília. A expectativa é histórica: 1 milhão de mulheres negras de todas as regiões do país na capital federal. Pela primeira vez, a Marcha contará com um grupo de trabalho dedicado exclusivamente às tecnologias, um passo urgente para pensar os desafios do nosso tempo e disputar o futuro com as ferramentas que nos atravessam: algoritmos, redes, dados, inteligências artificiais. Mobilizar mulheres negras com e através da tecnologia é também um gesto de reprogramação política: do presente, da linguagem e do imaginário.
Essa movimentação não vem do nada. Ela se alimenta de trajetórias que hoje brilham como faróis. Mel Campos, por exemplo, criou uma EdTech que une blockchain, curadoria de conteúdo e inteligência artificial afro referenciada. Sua plataforma, Wini.IA, permite que usuários interajam com personalidades históricas negras, como Maria Felipa ou Luiz Gama, e acessem versões regionalizadas da IA, criando uma experiência imersiva e afrocentrada. Uma reinvenção radical do modo como ensinamos e aprendemos sobre nossa história.
No campo da política digital, Bianca Kremer tornou-se a primeira mulher negra a integrar o conselho do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) como representante da sociedade civil. Uma presença que, mais do que simbólica, é estratégica. Já Fernanda Rodrigues tem sido uma das vozes mais consistentes na discussão sobre regulação da inteligência artificial, tensionando um debate que, se deixar de lado raça e gênero, estará fadado à injustiça. Terezinha Alves, por sua vez, nos lembra que discutir tecnologia é também discutir meio ambiente, território e justiça climática, um olhar amplo, enraizado e necessário.
E como não mencionar Larissa Santiago, uma das fundadoras do Blogueiras Negras – coletivo que atravessa a história de tantas – e que hoje compartilha o seu talento como secretária-executiva do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (MIR/PR). Ou Andreza Rocha, com sua potência afrofuturista no Afroya Tech Hub, que se apresenta como uma cadeia global de projetos e diversidade para a inserção, desenvolvimento e pertencimento de talentos negros no ecossistema de TI e inovação. E eu poderia citar tantas e tantas outras.
Essas mulheres são fontes. São faróis. São pontes. E para mim, são inspiração contínua. A caminhada que elas constroem é a mesma que me sustenta: feita de acúmulo, escuta e invenção. Por isso escrevo. Para não esquecer. Para celebrar. Para lembrar que, mesmo sob os ataques cada vez mais agressivos, seja pela violência política de gênero, pelo racismo algorítmico ou pelas ameaças à nossa presença nos espaços digitais, seguimos. E seguimos juntas. Por reparação e bem-viver!