É urgente reconhecer as novas roupagens do racismo diante da internet, e mais do que isso, é preciso enfrentamento e ação de todos.
Quando tive contato pela primeira vez com a internet, ainda criança, por volta dos 12 anos de idade, eu senti que nada era impossível, acessar sites, conversar com pessoas de outros lugares via Mirc e ICQ, entre outras experiências até então inimagináveis de forma tão rápida, era inebriante.
Em uma época cuja articulação de imagens também não era tão forte e facilitada como hoje, sem tantos likes, compartilhamentos de conteúdo e o perigo de cancelamentos/ameaças, muitas vezes sem rosto, o ambiente digital parecia forjar um coletivo em grande escala e transnacional de pessoas ávidas para experimentar os potenciais das trocas, do aprendizado mútuo, ou apenas da diversão. A sensação de liberdade e poder em transitar por espaços “suspensos” da realidade, marcada por diversas fronteiras que era difícil transpor, representava um estímulo à expressão sem medo. Isso se perdeu? Com a intensificação e sofisticação da velocidade da internet e a emergência das redes sociais, o potencial transgressor e de liberdade ruiu? Ou essa promessa não sustentava a presença cada vez mais frequente de grupos subalternizados, sobretudo negros, mulheres e periféricos, a medida que esses dispositivos tornavam-se mais acessíveis?
É tudo sobre poder
Em 1971, um grupo de pessoas negras se reunia no sul do Brasil para repensar a história do país¹. Eles estavam à procura de novos referenciais negros como forma de reafirmação da identidade negra, principalmente após o golpe de 1964, onde o movimento negro foi desarticulado. Era o Grupo Palmares, uma articulação de jovens negros universitários que realizava estudos sobre história e cultura negra. Formado por intelectuais da cidade, em Porto Alegre, eles elegeram o dia 20 de novembro como data de mobilização da população negra e conscientização sobre o racismo em substituição ao 13 de maio.
O 20 de novembro é o dia da morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo da história do Brasil, Palmares, em Alagoas. A proposta da data pelo grupo surge em conformidade com a história de Zumbi, constituída por luta e resistência, cuja liberdade foi conquistada, e não concedida. E essa ideia sustentava os pressupostos do grupo que buscava dar contornos próprios e representativos à história oficial, com a inserção dos feitos e construções das pessoas negras, ressignificando a ideia de liberdade e minimizando o sistemático apagamento da população negra da memória do país.
Assim como Zumbi — que lutou pela própria liberdade e que de forma coletiva construiu o maior quilombo da história do Brasil, um espaço seguro para pessoas negras —, e assim como o Grupo Palmares — que buscou também, coletivamente, em um espaço onde podiam se ouvir e falar, rearticular o movimento negro a partir de novas imagens, sem deixar de referenciar o passado —, os movimentos/agentes sociais, e negros, na contemporaneidade acionam tecnologias próprias, por meio de discussões coletivas, estratégias e buscam refletir quais mecanismos podem ser acionados para que a internet e as redes sejam, sinônimo de liberdade com responsabilidade e sem violência, sobretudo para as pessoas negras.
Memórias do futuro
Nesse sentido, o evento “Construindo Caminhos Contra o Racismo Online”, realizado pelo Aláfia Lab em duas etapas, na Bahia e em Brasília, propiciou discussões coletivas com a sociedade civil, academia e poder público, a fim de contribuir para um ecossistema digital saudável para todos e todas.
O policy brief que será lançado em breve, e foi construído de forma coletiva, resultado do evento, é mais do que um relatório: pode ser considerado como parte das coordenadas para um dos maiores desafios do nosso tempo. Ele reafirma que o racismo não migrou para o digital; ele se reconfigurou, encontrando nas plataformas um solo fértil para se reproduzir com uma virulência e escala inéditas. No Dia da Consciência Negra, este documento serve como um potente lembrete de que Zumbi dos Palmares não lutaria apenas nas matas de Alagoas, mas também nos feeds de notícias, nas contas de Instagram, e/ou outro meio da internet, como estratégia contemporânea para ter o maior alcance possível, e assim, aquilombar novamente, mais forte.
O relatório vai além de diagnosticar o problema, ele avança propondo um caminho estruturado em cinco pilares: Letramento, Dados, Regulação, Financiamento e Infraestrutura. Esta abordagem é essencial porque reconhece uma verdade fundamental: não há solução simples para uma questão estrutural. Combater o racismo online exige educar a sociedade para uma leitura crítica da mídia, produzir dados que tornem a violência visível, regular e responsabilizar as Big Techs pelo ambiente que cultivam, direcionar recursos de forma equitativa e, por fim, construir uma infraestrutura digital soberana que não nos mantenha reféns de lógicas externas. Em resumo, é tomar consciência para agir de forma assertiva.
Neste 20 de Novembro, a data não pode apenas se resumir a cerimônias de homenagem. Ela deve ser um catalisador de ação. O Dia da Consciência Negra é, por excelência, um dia de luta e reflexão sobre o passado para transformar o presente e vislumbrar o futuro. Se o racismo no ambiente digital performa de maneira sui generis, o enfrentamento a ele também precisa ser atualizado e esse documento fruto de discussões, sintetizado e rearranjado pelo Aláfia Lab, auxilia na atualização dessa luta, mostrando que o quilombo moderno também é digital.
É preciso construir trincheiras nos algoritmos, garantir que as narrativas negras e periféricas não apenas existam, mas circulem com força, e que as vítimas de racismo online não sejam deixadas em desamparo, mas tenham canais eficazes de denúncia e reparação.
Portanto, este 20 de Novembro nos convida a uma reflexão: que consciência estamos construindo para o futuro? Qual internet queremos ter? A data de Zumbi nos lembra da resistência contra as correntes físicas. O relatório do Aláfia Lab nos alerta para as novas algemas, digitais e algorítmicas, que perpetuam a exclusão e o ódio. Honrar a Consciência Negra no século XXI é assumir o compromisso de desmantelar o racismo em todas as suas frentes, inclusive e especialmente naquela que, de tão imersiva, muitas vezes passa despercebida: a tela do nosso celular. No fim, é tudo sobre poder e liberdade, parafraseando Octavia Butler², duas coisas que nós negros, sempre tivemos muito pouco.
