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jul 20, 2022 | destaques, notícias

Projeto de lei prevê cobrança para acesso automatizado a dados públicos

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O acesso aos dados públicos pode ficar ainda mais restrito. Tramita na Câmara dos Deputados, em caráter conclusivo, o projeto de lei (PL 2224/2021) que pretende alterar a Lei do Governo Digital (14.129/2021). O novo texto abre caminho para a cobrança do acesso a dados públicos via uma Interface de Programação de Aplicação ou API (sigla para Application Programming Interface em inglês) e a exploração comercial de dados pessoais.

O projeto, originalmente de autoria do deputado Felipe Rigoni (UNIÃO-ES), ganhou mudanças significativas sob relatoria do deputado Tiago Mitraud (NOVO-MG) e também prevê a cobrança de dados em tempo real, sem especificar essa temporalidade. Projetos anteriores já tentaram instituir cobrança pelo acesso a dados, que chegou a ser vetado na Lei do Governo Digital.

Segundo a redação do texto final, “será assegurada a gratuidade ou cobrança diferenciada para instituições acadêmicas, organizações sem fins lucrativos, micro e pequenas empresas e startups”. Especialistas comentam que essas emendas deixaram o projeto de lei muito aberto, podendo cobrar organizações da sociedade civil e pesquisadores. Como o texto menciona apenas organizações sem fins lucrativos, muitas empresas jornalísticas também ficariam de fora da isenção ou redução de valores, já que muitas têm fins lucrativos.

Os dados abertos através de processos automatizados são essenciais para trazer informações sobre ações dos governos e garantir que estejam disponíveis para o público de interesse. A Open Knowledge Brasil tem dois projetos que utilizam de dados abertos disponibilizados através de APIs. O projeto Operação Serenata de Amor, que mapeia gastos da cota parlamentar, e o Parlametria, que monitora projetos e informações sobre os deputados, usam a API da Câmara para acessar esses dados. Sem esse acesso, os projetos não existiriam. Da mesma forma, jornalistas de dados usam de APIs e dados abertos para produzir reportagens investigativas. A Fiquem Sabendo, por exemplo, virou uma fonte de dados públicos que muitas vezes não estavam disponíveis pelo governo. O projeto, portanto, coloca em xeque iniciativas da sociedade civil e jornalísticos.

Um bem público para o combate à desinformação

“O acesso aos dados é imprescindível para o combate à desinformação. A informação falsa ou enganosa existe porque a sociedade não tem informação adequada à sua disposição”, defende Bruno Morassutti, advogado e co-fundador da Fiquem Sabendo. A diretora da Open Knowledge Brasil, Fernanda Campagnucci, também vê com preocupação: “O governo vai vender o acesso aos dados a um ator, que vai poder republicar e até revender. Isso pode criar uma distorção no sentido de que as pessoas não vão ter como verificar a informação diretamente na fonte. Assim, um terceiro que teve forma de pagar [pelo acesso], vai ser o detentor dessa informação e poderá distorcê-la. É uma preocupação que pode acontecer”, adiciona.

Tanto a Lei de Acesso à Informação quanto a Lei do Governo Digital têm a previsão de disponibilização de dados abertos pelo governo. A legislação traz recomendações sobre como os órgãos públicos devem divulgar dados em formatos digitais e prover formas de acessar automaticamente os dados. As APIs, que buscam simplificar o desenvolvimento de aplicações e acesso aos dados, podem baratear o lado da oferta e tornar mais eficiente o consumo de dados em vez de downloads ou raspagem ostensivas em sites, que também podem onerar seus donos.

“Você vai baixar a base completa de dados, se tem essa necessidade de baixar o universo inteiro dos dados. Se você quer só um filtro por período ou um item específico, como um órgão específico dentro daquele orçamento federal, por exemplo, a API começa a ficar mais vantajosa porque você não precisa fazer o download de todos os dados. Também é interessante para o órgão público. A API é a forma ideal e mais madura de se disponibilizar informação. Principalmente, se a gente está falando de fomentar o consumo automatizado desses dados através de aplicativos, sites e análises, por exemplo”, explica Campagnucci.

Defensores da cobrança entendem que, se aprovado, o projeto de lei permitirá cobrir custos e melhorar a infraestrutura pública, possibilitando que empresas públicas e privadas cobrem diretamente de usuários pelo acesso automatizado. Isso, portanto, desonera o Estado. A diretora-executiva da Open Knowledge Brasil vê com preocupação essa hipótese. Para ela, o Brasil não atingiu um patamar de infraestrutura de APIs públicas nos órgãos públicos para cobrar. Bruno Morassutti, advogado e co-fundador da Fiquem Sabendo, concorda com a colocação. “A infraestrutura de tecnologia de informação do Governo Federal é muito insuficiente e pouquíssimo transparente. Temos grandes dificuldades para acessar dados públicos. Para qualquer tipo de solicitação que envolvam requisições de dados, funcionários utilizam de alegações que seu fornecimento exige trabalhos adicionais. Nos pouquíssimos casos em que eventualmente eles aceitam, colocam um preço extremamente inacessível”, destaca Morassutti.

Como exemplo, a diretora-executiva da Open Knowledge aponta que alguns estados adotaram APIs para fornecer dados públicos e conseguiram fomentar a oferta de serviços para seus cidadãos, sem a necessidade de investimento. “Desde 2015, a prefeitura de São Paulo disponibiliza uma API para localização de GPS dos ônibus. Isso permitiu que em muito pouco tempo, surgissem mais de uma dezena de aplicativos para que a população veja onde estão seus ônibus. A prefeitura de São Paulo nunca teve que investir em aplicativos próprios, que são muito caros, ela só disponibiliza a informação. Então é uma informação de interesse público. Tem empresas que usam essa informação comercialmente? Tem. Mas isso não inviabiliza que ela seja entregue de outras formas à população. Isso estimula o crescimento e o desenvolvimento do setor”, explica Campagnucci.

Na contra-mão das políticas mundiais

“Esse projeto de lei não é baseado em estudos que verifiquem que seja esse o melhor caminho para a acessar dados públicos mediante cobrança”, defende Morassutti. No mundo, a tendência é diferente. Hoje a União Europeia busca disponibilizar dados o mais gratuitos possível para que a população possa acessar de forma mais fácil. Isso é uma forma de proteger contra a elitização da informação. Sem essas medidas, “a informação acaba ficando realmente só disponível para quem tem condições de pagar”, explica o advogado. Para ele, pequenas empresas e pesquisadores acabariam não conseguindo utilizar esses dados, limitando a finalidade de ajudar no processo de inovação dos serviços públicos.

Campagnucci destaca que alguns países, como França e Alemanha, adotam a cobrança apenas em casos de dados restritos. Nesses países, os cidadãos têm uma infraestrutura básica boa em que fornece de forma aberta dados públicos em APIs, porém restringe a “quantidade de requisições que você pode fazer por minuto”. Isso não onera o Estado e permite cobrar de quem tem o interesse no uso massivo desses dados.

“Se a gente olhar por exemplo o site do 18F, um laboratório de inovação do Governo Federal dos Estados Unidos, existe uma discussão sobre os benefícios de construir API nos sistemas do governo e de abrir para o público. Um dos pontos é justamente economizar porque não precisa investir em serviços, aplicações, ou plataformas, porque pessoas em geral, a sociedade civil, entidades do jornalismo e até empresas podem fazê-las para uso público.”

“Nós temos bons exemplos no mundo dessa infraestrutura, porém ainda estamos longe de chegar nela e, eventualmente, governos que façam uma cobrança já estão num outro estágio. Eu acho que a gente precisaria de estudos antes de implementar esse PL (projeto de lei)”, conclui a diretora da Open Knowledge Brasil.

 

 

 

 

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