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jan 29, 2024 | pontos de vista

Liberdade de expressão e desinformação: a cansada narrativa da censura

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Um dos maiores desafios do direito na área digital/eleitoral é equacionar o combate à desinformação com a proteção à liberdade de expressão. O tema gera debates acalorados, mas algumas premissas precisam ser postas, especialmente com a aproximação do pleito municipal de 2024, que já traz pré-candidaturas anunciadas.

A primeira delas é um clichê que tem sido repetido diversas vezes, mas que ainda é objeto de reclamação por membros da comunidade jurídica. A liberdade de expressão não é um direito ilimitado e, portanto, pode sofrer restrições. A bem da verdade é que nem mesmo o direito à vida é irrestrito, já que a constituição prevê que, em caso de guerra declarada, a pena de morte é uma possibilidade (art. 5º, XLVII, da Constituição Federal).

Os próprios candidatos, quando têm sua honra ofendida ou fatos inverídicos sobre si divulgados, ajuizam ações para fazer cessar o desconforto. A possibilidade está prevista no § 1º do art. 27 da Res. TSE º 23.610/2019. Nesses casos, não há o que falar em censura, mas em reparação e defesa dos direitos da personalidade.

Democracias não toleram todos os tipos de discurso. Isso é um fato. Ainda mais quando esses discursos são utilizados para confundir, ludibriar e enganar as pessoas, estratégia comum da desinformação. A desobstrução do ecossistema informacional não pode ser compreendida como censura porque não é. Esta narrativa está cansada e precisa ser deixada de lado.

A liberdade de expressão não é sinônimo de expor o que se quer, da forma que se quer. Há um duplo aspecto envolvido. Tanto a prerrogativa de falar, quanto a receber conteúdos de seus pares. A liberdade de discursos envolve o direito de obter informações fidedignas, verdadeiras e precisas no livre mercado de ideias. O acesso à informação é uma garantia para a sociedade que precisa fazer escolhas embasadas, sobretudo quando se fala de dirigentes políticos que estarão em cargos eletivos na condução da coisa pública.

A liberdade de expressão, da mesma forma, não é uma autorização para erosão democrática interna, com ataques a instituições orquestrados para diminuir a confiança dos cidadãos no Poder Público, tais como os sofridos pela Justiça Eleitoral brasileira nos últimos anos. Se os discursos são falaciosos e geram repercussão negativa, as consequências que daí advém são legítimas. O Tribunal Superior Eleitoral, em duas oportunidades paradigmáticas [1], já deixou assentado que ataques aos sistema eletrônico de votação sem qualquer indício probatório, podem gerar cassação de mandatos e declaração de inelegibilidade. Igualmente não se observa censura, mas defesa de uma instituição que zela pela transferência ordeira e democrática do poder.

Liberdade de expressão não autoriza discurso de ódio. De acordo com Carlson [2], o discurso de ódio é compreendido como “expressão que busca ofender um indivíduo por suas características imutáveis, tais como raça, etnia, origem nacional, religião, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, idade ou deficiência”.

Imagine que determinado candidato defenda abertamente a escravidão de pessoas negras ou o extermínio da população LGBTQIAP+. Se as palavras atentam contra a dignidade e a existência dos indivíduos, colocando sua própria vida em risco, a atitude democrática não seria erradicar essa ameaça? Onde estaria a censura? Não se deve esquecer que uma estratégia comum da desinformação é explorar as vulnerabilidades sociais de grupos minorizados. Quem não lembra da suposta distribuição de mamadeiras em formato de falo que teria sido realizada por partido político sob a desculpa de combater a homofobia? A história já foi desmentida por diversas agências de checagem, mas levantou a ira da sociedade brasileira contra a famigerada ditadura gay.

Não se deve minimizar a importância da liberdade de expressão para as democracias, sobretudo nas campanhas eleitorais. Ela é essencial para que todos conheçam as plataformas políticas, as possibilidades de gestão e os perfis das pessoas que concorrem. A questão é alçar a liberdade de expressão ao patamar de princípio dos princípios, onde toda e qualquer intervenção estatal é vista como censura. Não dá mais. Não em 2024, quando o mundo discute a necessidade de regulação de plataformas sociais e inteligência artificial para proteção da sociedade.

[1] Julgamento do então deputado estadual, Fernando Francischini, nos autos do Recurso Ordinário 060397598 e julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, nos autos da Ação de Investigação Judicial Eleitoral 0600972-43.

[2] CARLSON, Caitlin Ring. Hate Speech. London: The MIT Press, 2021 ,p.9. Tradução do autor.

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Elder Goltzman

Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (bolsista CAPES). Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão. Professor e pesquisador. Autor da obra “Liberdade de Expressão e Desinformação em Contextos Eleitorais” pela editora Fórum.

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