É impossível tentar entender fenômenos contemporâneos da comunicação sem, primeiro, atentar-se para o atual estágio do capitalismo. Para o escritor e professor Muniz Sodré, em seu último livro Sociedade Incivil, vivemos a financeirização do mundo. As mudanças colossais do sistema se referem ao fato de que a “tecnologia e a tal economia de dados se tornaram o centro do capitalismo”, como reflete o professor Eugênio Bucci em seu Superindústria do Imaginário.
De fato, as maiores empresas do mundo são de tecnologia, reafirmando a frase que já ficou famosa, de que os dados são o novo petróleo. Assim, as plataformas digitais são as novas petrolíferas e vivemos um capitalismo de plataformas ou de dados.
A atuação das big techs impacta cada passo das nossas vidas, as interações, compras, serviços, trabalho. É o que alguns autores chamam de plataformização da sociedade. A atuação delas também modifica a forma com que consumimos notícias e impacta diretamente a forma de atuação dos veículos de comunicação. E é sobre isso que quero falar hoje, levantando mais perguntas que respostas.
Financiamento
Historicamente o jornalismo foi financiado pela publicidade, ou seja, apesar de assinaturas e vendas de jornais, o que bancava efetivamente o veículo de comunicação sempre foi a venda de espaços publicitários. Não que a crise do jornalismo seja apenas por isso, mas com a ascensão das plataformas, o cenário mudou significativamente: a publicidade tornou-se digital e personalizada, com as grandes empresas de tecnologia dominando este mercado e deixando os jornais à mercê delas. De acordo com uma pesquisa realizada pelo GroupM, do WPP, os cinco maiores vendedores de publicidade em 2020 somaram 46% de toda receita global, sendo a liderança ocupada por Google (21%) e Facebook (14%), demonstrando um mercado extremamente concentrado.
A produção jornalística então precisou adaptar-se à lógica da plataformização, inserindo-se nas redes de mídias sociais e tornando-se cada vez mais dependente das empresas de tecnologias para conquistar audiência e anunciantes. Essa mudança na publicação de notícias e utilização das ferramentas que as plataformas disponibilizam, como o Instant Articles do Facebook, cobra um preço caro ao jornalismo, que não é remunerado, mas gera lucro para as big techs. Como destaca Carlos Castilho, “tanto as Organizações Globo como o Facebook vivem do conteúdo produzido por jornalistas, só que as primeiras pagam salários enquanto a empresa de Mark Zuckerberg alega que só republica notícias, logo não precisa pagar a ninguém”.
Essa discrepância de receita e de responsabilidades vêm gerando atritos entre as organizações. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 200 jornais se posicionaram contra as grandes empresas de tecnologia, abrindo processos e ações antitruste. O argumento principal é que essas empresas monopolizam o mercado de publicidade digital, abocanhando a parcela de receitas que iria para as mídias locais. Ao site de notícias norter-americano Axios, o Google destacou que a empresa seria uma das maiores apoiadoras do jornalismo e forneceria “bilhões de dólares para apoiar o jornalismo de qualidade na era digital”.
O Google, de certa forma, não mentiu. As plataformas destinam alguns milhões de dólares para organizações ao redor do mundo por meio de projetos como Google News Initiative e Meta Journalism Project. No entanto, como alertou Guilherme Felitti, as big techs não são amigas do jornalismo. Com essas ações, apesar de incentivarem algumas iniciativas, o controle e a dependência dos veículos por meio desses financiamentos mostra-se ainda maior. Além disso, pesquisas mostram que veículos de desinformação estão sendo patrocinados por esses projetos.
Como uma forma de mediar esse meio de campo, alguns especialistas apostam em regulação. Vemos o primeiro exemplo de uma lei que efetivamente tocou nessa ferida na Austrália, em que Google e Facebook precisam pagar pelo conteúdo noticioso veiculado por empresas de mídia. Seria esse o caminho mais adequado? Esse enfrentamento do governo australiano às empresas de tecnologia trouxe tensões e vem mostrando que acordos entre os dois lados podem privilegiar grandes corporações em detrimento de outras.
PL 2630
Esse é um dos pontos de quem vê com receio esta regulação no Brasil. Na última semana, um artigo do PL 2630/2020 que trata do financiamento do jornalismo por meio das empresas de tecnologia gerou controvérsias. Questões como concentração midiática e até retaliação são colocadas por entidades do setor que analisam a medida como generalista, o que pode provocar um efeito oposto ao desejado. Atualmente, o artigo 38 está disposto da seguinte forma, mas espera-se que haja revisão desse dispositivo:
Art. 38 Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores ensejarão remuneração ao detentor dos direitos do autor do conteúdo utilizado, ressalvados o simples compartilhamento de endereço de protocolo de internet do conteúdo jornalístico original e o disposto no art. 46 da Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, na forma da regulamentação.
Ainda não há uma resposta possível de qual seria a saída mais adequada para criar um espaço favorável para veículos de comunicação dentro das plataformas. Como conciliar o direito autoral, as receitas publicitárias e as responsabilidades editoriais ainda são perguntas que trazem muitos prós e contras e não acredito que sejam facilmente respondidas em um artigo de legislação. A sustentabilidade do jornalismo, saída importante contra a desinformação, e a regulação das plataformas são temas complexos a serem pensados com pressa, mas sem atropelos.