Por Beatriz La Corte, Gabriela Nangino, Giulia Polizeli, Isabela Nahas e Regina Lemmi e Maria Luiza Vieira*
O novo boletim “Elas Vivem: um caminho de luta”, divulgado neste ano pela Rede de Observatórios da Segurança do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), revelou dados alarmantes sobre a violência contra mulheres no Brasil. O estudo, que monitorou políticas públicas de segurança e fenômenos de violência em nove estados, apontou que, em 2024, ao menos 13 mulheres foram vítimas de violência a cada 24 horas nessas regiões. No total, foram registradas 4.181 mulheres vitimadas, um aumento de 12,4% em relação a 2023, ano em que o estado do Amazonas ainda não integrava o levantamento.
Esses números acendem um alerta sobre a persistência e o crescimento da violência de gênero em nosso país. Embora o boletim não aborde diretamente a motivação por trás de cada caso, é crucial refletir sobre os fatores que contribuem para essa escalada. Um desses fatores, cada vez mais presente no debate público e nas análises sobre crimes de ódio, é a ideologia Incel (involuntário celibatário).
➡️ O que são os Incel? 
Movimentos Incel, que florescem em fóruns online e redes sociais, são compostos predominantemente por homens que se consideram incapazes de estabelecer relacionamentos românticos ou sexuais com mulheres e que atribuem essa “falha” a fatores externos, especialmente às próprias mulheres. Essa frustração, muitas vezes, se traduz em um profundo ressentimento, ódio e misoginia, que pode escalar para a defesa e prática de atos de violência contra o gênero feminino. Embora nem toda violência contra a mulher esteja ligada diretamente a essa ideologia, a disseminação de narrativas Incel contribui para um ambiente que normaliza e, em alguns casos, glorifica a misoginia, alimentando um ciclo de ódio que pode culminar em agressões físicas, sexuais e psicológicas.
A mente de um incel
Segundo estudo dos pesquisadores André Vilela de Souza e Manoel Antônio dos Santos, a misoginia e suas múltiplas manifestações têm origem em tempos tão antigos que são considerados impossíveis de lembrar ou rastrear com precisão, e continuamente reverberam estruturas de poder hegemônicas.
Porém, a arquitetura da internet possibilitou o exercício de violências de gênero de forma anônima. Essa característica não apenas perpetua condições de desigualdade, mas acentua comportamentos preconceituosos, discriminatórios e mesmo criminosos.
A liberdade de se esconder por trás de um usuário cria no agressor e em seus aliados uma sensação de impunidade, impulsionando o alcance de confrontos que, segundo o autor, visam “disseminar pensamentos tóxicos e sedimentar discursos de ódio, voltados especialmente contra minorias historicamente subjugadas”. Vilela ainda destaca que a regulação precária do ambiente virtual e sua percepção como “terra sem lei” permitem que interações agressivas — inaceitáveis no mundo off-line — sejam relativizadas pelo distanciamento físico ou pela falsa noção de que a internet não é um espaço tão “real” quanto os demais.
➡️ O que é Machosfera?
Machosfera é o nome dado a ambientes virtuais dominados por sites, fóruns e comunidades de redes sociais cujo temática gira em torno da masculinidade exacerbada, influenciada por ideologias segregacionistas da ultradireita. Vilela de Souza destaca que diversos subgrupos da “machosfera”, apesar das filosofias semelhantes, têm finalidades e perspectivas distintas. Entre eles, está o movimento incel, caracterizado por culpar as mulheres pela sua falta de sucesso em relacionamentos sexuais e amorosos.
Mas por que esses sentimentos surgem — e como eles são reproduzidos? Paulo Beer, professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), afirma que grupos de incels tendem a cooptar homens jovens e fragilizados psicossocialmente que, motivados por sentimentos de angústia e desamparo, encontram uma resposta nessas profundezas do mundo virtual. Em vez de serem encorajados a tentar superar suas decepções, os homens alimentam essa subcultura que os incentiva a afundar em um ciclo vicioso de isolamento, decepção e ódio.
O pesquisador explica que a identidade social, para a psicologia, vai muito além de uma compreensão de si mesmo: ela determina aquilo em que uma pessoa é igual e aquilo em que ela é diferente das demais. “Adolescentes enfrentam uma necessidade de aprovação muito latente”, pontua. Ele adiciona que o funcionamento da internet, por si só, predispõe o enrijecimento das identidades — o consumo de conteúdos repetitivos impulsiona o desejo de encaixar-se em tribos sociais, enquanto os algoritmos das redes favorecem expressões de extremismo e agressividade.
Mais do que apenas se reconhecerem em um sofrimento compartilhado, grupos misóginos se fortalecem ao redor de uma revolta coletiva frente aos modelos atuais de socialização. Beer reforça que essas comunidades se fecham em suas próprias bolhas e perdem o contato com grupos distintos. “Isso leva os integrantes a utilizarem enunciados que não comportam negociação, produzindo uma incapacidade de lidar com diferentes opiniões”, afirma.
O psicanalista destaca dois movimentos principais exercidos por essas comunidades: a união em prol de um ideal comum — recuperando um conservadorismo nas formas de interação e adotando mecanismos de persuasão e alienação — e, em seguida, a determinação de um inimigo comum: as mulheres.
Segundo o professor do IPUSP, a linha divisória com o mundo “real” se torna cada vez mais tênue. Antigamente, grupos extremistas dependiam de um isolamento físico para se fortalecer (como ocorria em casos de cultos e seitas); agora, isolar-se na tela de um celular é mais fácil do que nunca. “Muitas vezes, [esse ambiente] produz a identificação com um líder, ideal ou lifestyle”, explica Beer. Muitos vídeos na internet, por exemplo, disseminam a “forma perfeita” de lidar com mulheres, a fim de torná-las submissas à suposta ordem natural do gênero.
Mais do que entender a visão de masculinidade propagada por esses grupos, Beer ressalta que a percepção psicossocial das vítimas demanda mais atenção. Os danos em saúde mental para as mulheres que são atingidas nas redes sociais pelos discursos de grupos incels são graves, e podem incitar males que vão além do mundo virtual.
“Há uma sensação de não conseguir chegar no outro ou ser escutado”, reflete o professor do IPUSP. A violência provoca um sentimento de impotência que pode desestabilizar o senso de realidade da própria vítima. Consequentemente, as meninas selecionadas como alvo dessa revolta nas redes ficam mais vulneráveis a desenvolver uma série de transtornos mentais. “Desde ansiedade, sintomas depressivos e medo até [o sofrimento] de não saber quando isso pode sair das redes”, conclui Beer.
O conforto da extrema direita na Internet masculinizada
A pós-doutora em Ciência Política e autora da obra vencedora do Prêmio Jabuti, O novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro, Marina Lacerda afirma que “as narrativas que a extrema direita propõe na internet são narrativas que geram muito engajamento. É de uma militância contra inimigos, que envolvem polêmicas e teorias da conspiração”.
Atualmente, a extrema-direita pode ter ressurgido com o avanço das crises do neoliberalismo. Conforme Olivier Voirol em Solidarity as Social Reconstruction (‘Solidariedade como Reconstrução Social’, 2020), a justiça social como estabelecida pela ONU deixou de ser uma prioridade no sistema neoliberal do século XXI. “[O liberalismo social] baseia-se no liberalismo político por meio de uma noção superficial de justiça social. Sem defender uma ideia forte do social, o liberalismo social afirma preservar uma certa ideia de justiça social nas relações vistas principalmente em termos de mercado”.
À respeito da atualidade, Lacerda afirma que “a adesão à extrema direita é uma resposta ao avanço do feminismo, do movimento LGBTQ+ que desestabilizaram alguns papéis sociais tradicionais agarrados por diversas pessoas como uma forma de se proteger das mudanças”. Para ela, em meio às décadas de neoliberalismo e crescente desigualdade, as pessoas recorrem às instituições tradicionais para se sentirem protegidas e dar sentido às suas vidas.
Para tentar criar uma narrativa coesiva, a extrema-direita atual constrói uma série de inimigos, seja o imigrante, a comunidade LGBTQ+, ou o beneficiário de política afirmativa. De acordo com Lacerda, estes inimigos “são perfeitos álibis para você não ver os reais inimigos que são os grandes detentores de fortunas”.
Para ela, a culpabilização de minorias é uma reação mais simples e confortável do que a compreensão da complexidade sistêmica. Assim, o ressentimento desses grupos se agrava a cada vez que mulheres conquistam espaços de independência e liberdade. Na lógica incel, a submissão feminina é o que coloca os homens em um lugar de poder: quando elas não se submetem, elas estão negando a posição de poder dos homens.
A cientista política reitera que outra causa do conservadorismo emergente é a retaliação aos movimentos relacionados à esquerda. Atualmente, “a esquerda em muitos lugares do mundo, aparece como a defensora do status quo, em que defende as instituições democráticas. As pessoas veem na extrema direita, por sua vez, uma possibilidade de ruptura”, diz.
Estes discursos impactam em sua maioria o público masculino que se sente injustiçado pelas mudanças sociais. De acordo com um estudo do The Economist em 2020, há uma disparidade de 75% entre as ideologias políticas de homens, que tendem à direita, e de mulheres, majoritariamente de esquerda.
Quem lucra com o sofrimento das mulheres?
Com a popularização da extrema-direita nas redes sociais, houve o ressurgimento da ‘Machosfera’ – um conjunto de comunidades online formadas por homens que discutem temas relacionados à masculinidade. Antes restritos a plataformas mais discretas, esses grupos passaram a utilizar cada vez mais ferramentas disponíveis em redes sociais de posts abertos como o Instagram, Facebook, X e o TikTok, para expandir diferentes subnichos.
Desde a sua criação, as redes viraram um meio altamente rentável que, para muitas pessoas, como os influenciadores digitais, tornaram-se substitutas do modelo de trabalho tradicional.
Débora Salles, pesquisadora do NetLab, laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dedicado a diagnosticar o fenômeno da desinformação digital e suas consequências sociais no Brasil, explica que os influenciadores tornaram-se fios condutores das comunidades misóginas.
De acordo com Salles, os influencers criaram uma forma de tornar seu ativismo contra as mulheres em algo rentável através de todas as plataformas digitais, enquanto incentivam seus seguidores a entrarem no conhecido “buraco do coelho”, que os fazem engajar cada vez mais em conteúdos que estimulam a radicalização e o pensamento misógino.
Apesar do seu amplo alcance por todas as plataformas, o Youtube se tornou um dos principais focos de comunidades ‘masculinistas’. Utilizando de estratégia de deflexão e uma linguagem própria para fugir da moderação, esses influenciadores utilizam premissas de “desenvolvimento pessoal masculino” para promover vídeos pregando o controle sobre as mulheres e a deslegitimação do feminismo.
Segundo uma análise de 2023, realizada pelo Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, parceria entre o Ministério das Mulheres com o NetLab, até dezembro de 2024, existiam 137 canais na plataforma com mais de 152 mil inscritos no total, voltados a esse tipo de conteúdo, todos com pelo menos um vídeo contendo anúncios monetizados.
Os vídeos monetizados, no entanto, não são a única nem a maior forma de lucro desses grupos. Alguns influenciadores oferecem clubes de assinatura que variam entre R$12 e R$150 reais por mês. Outra prática comum para arrecadação de lucros é o uso dos SuperChats, um recurso do YouTube que permite aos espectadores comprarem mensagens destacadas e fixadas no chat durante transmissões ao vivo e estreias.
Fora da plataforma de vídeos são vendidos ebooks, que atingem o valor de até R$397, e criadores de conteúdo oferecem sessões de treinamento comportamental cobrando, por volta de, R$1.000 por encontro.
O episódio “Machosfera movimenta negócio lucrativo na internet”, do podcast realizado pelo veículo DW Brasil, traz uma análise feita por Mariana Valente, doutora em direito pela USP e diretora do InternetLab, que justifica a alta distribuição desse tipo de conteúdo para jovens garotos. Ela explica que o algoritmo das redes sociais é baseado em algo que podemos chamar de “economia da atenção”, ou seja, ele premia conteúdos sensacionalistas e divisivos por atraírem mais atenção e gerar maior engajamento, seja ele bom ou ruim. Essa observação utiliza como base o conceito de Economia da Atenção criado por Herbert A. Simon, pesquisador norte-americano, na obra “Designing Organizations for an Information-Rich World” de 1971.
Internet, suposta ‘terra sem lei’
No Brasil, mais de um milhão e meio de mulheres tiveram fotos íntimas divulgadas sem consentimento na internet, entre março de 2024 e março de 2025, segundo a pesquisa Visível e Invisível: Vitimização de Meninas e Mulheres. De acordo com o portal SaferNet, o número de denúncias de conteúdo online misógino aumentou em 251% de 2021 a 2022. Esse tipo de crime de ódio foi o terceiro que mais cresceu, atrás apenas de intolerância religiosa (453%) e xenofobia (874%).
O crescimento de conteúdos digitais que ferem os direitos humanos é consequência da diminuição de mecanismos de controle das redes sociais e da aceitação cada vez maior desse tipo de discurso em ambientes públicos. É o que explicou Mariana Valente.
Apesar do contexto de violências, ela afirma que existem leis brasileiras que criaram balizas para a proteção de grupos minoritários, como as mulheres, no meio online. Alguns exemplos são a Lei Carolina Dieckmann, nº 12.737/2012, a Lei Rose Leonel, n° 13.772/2018, e a Lei Lola, nº 13.642/2018.
Essas leis dizem, respectivamente, o que são crimes cibernéticos e quais as consequências de cometê-los, que a exposição da vida íntima da mulher é violência doméstica e que cabe à Polícia Civil a investigação de casos de propagação virtual de violência contra a mulher.
Mariana Valente disse que, apesar dessas leis existirem, não há uma criminalização do discurso misógino, especificamente. Além disso, a legislação que regula a internet, o Marco Civil da Internet, “foi pensado num contexto em que as redes não tinham a capacidade que elas foram adquirindo de direcionar conteúdos, e isso também como um modelo de negócio”, afirmou a especialista.
Paula Bernadelli é também advogada e integra a Comissão de Direito Eleitoral da OAB em São Paulo. Em entrevista ao InternetLab, ela disse que, apesar de haver avanços no judiciário com relação a forma de ver os casos de ataques contra mulheres, ainda há obstáculos para uma redução efetiva de discursos e ataques de ódio. Alguns dos motivos são que a legislação não consegue acompanhar a velocidade em que as informações se espalham pela internet e que, no ambiente digital, é mais fácil se esconder.
“Às vezes, pensamos em discurso de ódio considerando ataques e ofensas que são feitas por pessoas que sabemos quem são, que têm rosto. Essas pessoas são fáceis de serem acionadas e geralmente não são responsáveis pelos ataques mais graves, que são coordenados por grupos que operam na dark web, que não são fáceis de serem rastreados, que têm uma operação coordenada – isso é muito mais difícil”, explicou Paula.
Conforme os indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, acessíveis pelo portal SaferNet, os três domínios com mais páginas denunciadas por misoginia no mundo desde 2006 são o Facebook, o X (antigo Twitter) e o TikTok. Porém, os grupos da extrema-direita online surgiram e ganharam força em fóruns menos públicos, como na deep web.
Mariana Valente explicou que “eles terem ganhado essa camada mais superficial da internet tem a ver com pelo menos duas coisas. Uma é a ascensão de um conservadorismo, que ganhou muita força nos últimos 15 anos em vários lugares do mundo, formas de expressão da extrema-direita misógina. E, de outro lado, uma incapacidade de lidar com esse problema quando ele era de nicho”.
Paula também alertou que, mesmo após descobrir quem realiza os ataques, não necessariamente eles acabam. Em casos em que a mulher recebe múltiplas mensagens ou processos judiciais, por exemplo, um ato isolado pode não ser identificado como misógino, o que limita a proteção da vítima caso o contexto e a sua segurança não sejam colocados em conta.
Para Mariana Valente, é preciso regular as redes sociais. Ela apontou, porém, que a contenção não deve parar por aí: “hoje a gente tem outro debate sobre regulação das redes sociais que precisaria avançar muito para dar conta dessas novas características é muito simplista achar que regular as redes vai fazer esse problema sumir. Ele pode diminuir bastante, mas vai aparecer em outros lugares”.
(*) Esta matéria foi produzida por alunas da disciplina Legislação em Jornalismo do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) durante o primeiro semestre de 2025.
 
				