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Viena Filmes

set 25, 2023 | Pontos de Vista

NPC: a face visível da economia da atenção ou da humilhação? 

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“Hmmm, milho, que delícia” e “obrigado pela rosa” foram, provavelmente, as frases – com muitas variações – mais ouvidas pelos usuários do TikTok nos últimos dias. E, se você não as ouviu  e não sabe do que eu estou falando, talvez você seja uma pessoa que tem um pouco mais de futuro na humanidade do que eu neste momento. Não quero ser a portadora da má notícia, mas precisamos falar sobre isso. 

Há umas duas semanas estourou no Brasil a febre de lives NPC. A sigla em inglês significa “personagem não jogável”, ou seja, aquele personagem secundário dos jogos de videogame que não são controlados pelos jogadores e, portanto, possuem movimentos repetitivos. Não me pergunte o porquê, mas essa lógica começou a ser transferida para o TikTok. 

Em julho, a influencer PinkyDoll viralizou com lives do tipo, em que faz movimentos repetitivos agradecendo os presentes que recebe de quem assiste ao vivo. Por exemplo, ao receber um sorvete, a influenciadora fala “yes, ice cream so good”. Tudo isso em loop. Por horas. 

Print da live NPC da influenciadora PinkyDoll

E por que? 

Porque cada presente desse significa dinheiro dentro da plataforma. O New York Times publicou que a PinkyDoll chegou a ganhar quase R$15 mil por transmissão. Atualmente, ela se intitula a rainha do NPC.

No Brasil, o influenciador Felca inspirou as lives. Trouxe para cá a febre e muita gente entrou na onda. É impossível abrir a aba de lives do TikTok e não dar de cara com alguém fazendo esse tipo de “conteúdo”. Hoje mesmo fiz o teste e de cada 10 lives que vi, 8 eram de NPC. Nos mais diversos lugares, as mais diferentes pessoas com vozes infantilizadas ou caricatas, fantasiadas ou não, repetem os mesmos movimentos à espera de uma rosa, um milho ou qualquer outro objeto que possa ser convertido em dinheiro. 

Print de live NPC / Reprodução TikTok

Em uma pertinente reflexão nas suas redes sociais, a pesquisadora Issaaf Karhawi questiona se não podemos nomear essas pessoas como marionetes digitais, em uma “espécie de manipulação paga em que a pessoa é controlada por meios financeiros”. 

Mais do que influenciador digital, no NPC o criador de conteúdo é o próprio produto e ultrapassa muitas vezes a linha do que é considerado vexatório a fim de arrecadar algum dinheiro. ‘Algum’ porque isso depende bastante do número de pessoas que vão estar nessa live e quantas doações você vai conseguir. Assim como no mundo influencer, nem todos são bem sucedidos, como mostrou a reportagem do Fast Company.

O NPC desenha nitidamente uma face da economia da atenção. Quanto mais atenção você consegue, mais você lucra. Seja uma grande plataforma, seja um usuário que tenta se tornar um influenciador, é assim que o mercado funciona.

E, como a gente sabe, alguns conteúdos atraem mais que outros. A desinformação atrai mais que a verdade. O emocional atrai mais que o racional. E o ridículo também atrai. De certa forma, a economia da atenção vai em alguns momentos se transformando na economia da degradação. Degradação dos conteúdos e, por certo, das próprias pessoas. 

A minha intenção não é julgar necessariamente aquele indivíduo que decide entrar nessa onda, mas toda a sociedade – inclusive as pessoas que pagam para sentir o prazer de ver o outro realizar aquele movimento – e o mercado que permitem que cheguemos a esse ponto. O ponto que até mesmo o Felca – o influenciador que publicou as primeiras lives do Brasil – resume: “todo mundo se humilhando por migalha, eu me humilhando por migalha”. 

Esse influenciador, em particular, faturou R$31 mil em uma semana e depois destinou todo o valor para caridade. Em um vídeo na sua rede social, ele faz uma forte crítica a essa onda. “Todo burro consegue ficar famoso na internet se tiver disposto a se humilhar o suficiente. Não confunda números com conteúdo, não é porque tem muita gente assistindo uma coisa que essa coisa tem valor”, diz.

Felca fala sobre lives de NPC / Reprodução X

No mesmo vídeo, Felca comemora a decisão do TikTok. É que ele mesmo teve uma live com visibilidade reduzida pela plataforma, uma mudança de entendimento da empresa que começou a rebaixar os conteúdos que envolvem ações repetitivas e não autênticas. Para ele, foi uma vitória mudar a política da empresa sobre esse tipo de conteúdo.

Aviso sobre a restrição da live NPC / Reprodução X

Se o TikTok tomou essa atitude em prol dos seus usuários ou dos seus próprios interesses econômicos (para que a plataforma não seja vista apenas por esses conteúdos), eu deixo vocês julgarem. 

O fato é que, como tudo nas redes sociais, essa moda vai passar e outra vai surgir. Espero que não passe sem a gente parar para refletir sobre isso. E espero que quando a próxima surgir, ela seja menos vazia.

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Liz Nóbrega

Jornalista, mestre em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN) e doutoranda em Ciências da Comunicação (PPGCOM/USP). Estuda desinformação, checagem de fatos e plataformas digitais. É repórter do *desinformante.

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