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acervo pessoal

A Kombi elétrica antecipa os riscos para as próximas eleições

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A propaganda da Volkswagen que comemorou os 70 anos da montadora e o lançamento da nova Kombi elétrica foi marcada por polêmicas. O debate recaiu na criação por inteligência artificial (IA) da cantora Elis Regina, morta há 41 anos, aparecendo lado a lado com a sua filha Maria Rita. Inicialmente, a repercussão se deu pelo lado emocional da peça publicitária e pela criação digital de algo que nunca foi possível, mãe e filha cantando juntas. Em seguida, a discussão se ampliou para a contradição do uso da música “Como nossos pais”, que era um símbolo de combate à ditadura militar, num comercial da montadora que tem  comprovado envolvimento com esse regime de opressão.  Junto disso, levantou-se a questão ética de trazer mortos de “volta à vida” sem seus consentimentos – o Conar chegou a instaurar um processo ético para investigar o anúncio depois de queixas de consumidores – e mesmo para apoiar certos comércios que os mesmos poderiam ser frontalmente contrários, afinal, Elis Regina, por exemplo, sempre lutou contra a ditadura e possivelmente não ficaria satisfeita de ver sua imagem sendo usada neste contexto e por essa montadora.

Agora, gostaria de não entrar nessa discussão específica e tentar fazer a conexão com a desinformação nas eleições. Apesar de parecer inicialmente um salto analítico, na prática, o que a propaganda nos mostrou foi um deepfake de Elis Regina. Deepfake é o nome dado para a recriação artificial das faces e mesmo vozes de pessoas sem ter a necessidade da participação direta das mesmas. Como essa recriação depende de haver um extenso banco de dados (imagens, vídeos, gravações da voz etc.) da pessoa em questão, geralmente, as deepfakes são focadas em personalidades públicas.

 Ao contrário do que alguns podem imaginar, não se trata de uma técnica nova. Por exemplo, vários derivados de Star Wars já fizeram uso da tecnologia, como a princesa Leia (Carrie Fisher) foi recriada jovem para o filme Rogue One e Luke Skywalker (Mark Hamill) também foi trazido de volta para a série Mandalorian, sendo que o ator, na prática, não gravou nenhuma cena. Toda a participação do personagem foi construída usando inteligência artificial. E talvez alguns não saibam, mas essa mesma tecnologia foi utilizada no último filme de Indiana Jones para rejuvenescer artificialmente o ator Harrison Ford.

A novidade é que tais tecnologias já não apresentam o mesmo custo de anteriormente e não estão restritas a grandes estúdios de Hollywood. Em 2023, o mundo inteiro ficou surpreso com a capacidade do ChatGPT de gerar textos similares ao de humanos e manter diálogos coerentes sobre inúmeros assuntos (e já foi discutido aqui no Desinformante alguns possíveis impactos em termos de desinformação). Porém, o ChatGPT é apenas um de inúmeras inteligências artificiais generativas, ou seja, que geram conteúdo. Sem querer apresentar a receita do bolo (e consequentemente o nome das ferramentas), já temos diversas IAs que geram textos, imagens e também áudios e vídeos. Todas a baixo ou nenhum custo. A título de exemplo, muitos devem ter visto a imagem gerada por inteligência artificial do Papa Francisco usando jaquetas descoladas e um estilo rapper.

Então, chegamos ao ponto deste texto. A referida propaganda nos mostra como é possível (e, em alguma medida, fácil) reproduzir a imagem de outras pessoas. Logo, o que deve demandar atenção no futuro próximo é o uso de deepfakes em eleições. Ou seja, a criação de imagens, áudios e vídeos falsos com atores políticos envolvidos nas eleições.

É claro que já tivemos tentativas “toscas” de criar tais desinformações, como as edições primárias de falas do Jornal Nacional para criar uma fala fictícia de que Bolsonaro estaria à frente nas pesquisas eleitorais de 2022, algo que, de fato, nunca aconteceu. Todavia, no momento, estamos falando da possibilidade real de uma criação digital verossímil de agentes políticos e que pode, na prática, dizer e fazer qualquer coisa, conforme o desejo de seus manipuladores. Então, não teríamos “apenas” mensagens de desinformação sobre kit gays na escola ou de mamadeiras com formato de genitais, como aconteceu em 2018, mas sim um vídeo ou áudio fake imitando a imagem e a voz de Haddad afirmando que essas seriam medidas de seu eventual governo. Ou ainda, uma recriação realista dos apresentadores do Jornal Nacional dizendo, falsamente, que Bolsonaro ultrapassou as intenções de voto no último momento das eleições de 2022. O estrago que tais criações digitais podem ter às vésperas de uma eleição é certamente imensurável.

Então, possibilidades sinistras como essas nos reafirmam a importância de uma legislação brasileira sobre desinformação, fake news e regulação das plataformas digitais, incluindo a responsabilização das mesmas pela circulação massiva de materiais dessa natureza. Também denotam a importância da regulação específica para aplicativos, plataformas e usos de inteligência artificial, notadamente em situações políticas, como consultas públicas e eleições. A União Europeia mantém seu papel de protagonismo e já apresenta uma regulação avançada na questão.

O presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ao dar o voto definitivo para tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível, mencionou que o tribunal havia sido pego de surpresa em 2018, mas que havia aprendido a lição e se preparado para as eleições em 2022. Um pouco do objetivo desse texto é ressaltar a importância de estarmos preparados para essas novas formas de desinformação e manipulação do debate público ANTES das próximas eleições.

Este preparo não deve, entretanto, ser restrito ao Judiciário. Também os diversos atores políticos institucionais (como partidos e órgãos públicos) e coletivos e organizações da sociedade civil precisam estar atentos e também preparados para esses e outros usos de inteligência artificial generativa para desinformação. Aqui, o foco esteve na questão dos deep fakes que, como a supracitada propaganda nos mostrou, é algo que ainda não está no cotidiano dos brasileiros e pode ter uma grande aceitação antes de ser desmentida. Porém, tais IAs generativas já podem ser facilmente utilizadas para a produção massiva de desinformação pelos métodos habituais, texto e imagens. A convocação à discussão e regulação da questão é coletiva.

E tal preocupação não pode ficar restrita ao campo da esquerda. Deputados e políticos de direita que afirmam de modo tão veemente que qualquer regulação se iguala à censura devem se lembrar que há agentes mal-intencionados em todos os lados. O exemplo da falsa foto criada por inteligência artificial de Donald Trump sendo preso é apenas um caso para a reflexão dos impactos negativos que poderemos ter em nosso debate público no futuro próximo.

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Rafael Cardoso Sampaio

Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD). Coordenador do grupo de Pesquisa Comunicação Política e Democracia Digital (COMPADD).

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