A desinformação esteve no centro do julgamento finalizado, nesta terça-feira (21), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à trama golpista. Os juízes da Primeira Turma condenaram os sete réus que formam o chamado “núcleo 4” dos inquéritos relacionados ao 8 de janeiro de 2023 por articular a disseminação de informações falsas sobre as urnas eletrônicas e fomentar ataques contra instituições democráticas e autoridades, utilizando inclusive a estrutura da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para divulgar notícias falsas.
A ação penal 2694, que compõe o chamado “núcleo da desinformação dos atos antidemocráticos”, detalha que a denúncia se baseia em documentos produzidos pelos próprios réus, com fatos praticados publicamente, como planos apreendidos, bens públicos destruídos e diálogos comprovados. Segundo a PGR, essas ações tiveram papel central na tentativa de enfraquecer a confiança no sistema eleitoral e nos órgãos democráticos.
O julgamento teve decisão majoritária de 4 votos a 1, confirmando a acusação da PGR de que os réus promoveram ações de desinformação e ataques virtuais contra instituições e autoridades entre 2021 e 2023. Entre os sete condenados estão ex-integrantes do governo de Jair Bolsonaro, militares do Exército e agentes de inteligência e o fundador do Instituto Voto Legal.
“Simbólica e politicamente essas condenações definem um marco claro de que estratégias sistemáticas de desinformação contra a integridade do nosso sistema eleitoral não só não serão aceitos, como serão celeremente investigados e punidos”, avalia Beto Vasques, Diretor de Relações Institucionais do Instituto Democracia em Xeque.
O julgamento do núcleo 4 reforça um momento significativo na atuação do STF no enfrentamento à desinformação política. Ele se soma à condenação do chamado núcleo 1, que já responsabilizou o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros envolvidos por ações antidemocráticas, consolidando precedentes importantes sobre a responsabilização de agentes que buscam minar o Estado Democrático de Direito.
Quem são os réus e do que são acusados
O núcleo 4 é formado por:
- Ailton Gonçalves Moraes Barros – major da reserva do Exército; apontado como elo entre militares e civis que defendiam a ruptura institucional. Teria trocado mensagens com o general Walter Braga Netto para discutir ataques virtuais contra comandantes das Forças Armadas e pressionado o ajudante de ordens Mauro Cid a convencer Bolsonaro a dar um golpe.
- Ângelo Martins Denicoli – major da reserva do Exército; acusado de editar e divulgar documentos falsos sobre urnas eletrônicas, atuando como intermediário entre produtores de desinformação e influenciadores.
- Giancarlo Gomes Rodrigues – subtenente do Exército; segundo a denúncia, criou uma rede clandestina dentro da Abin para monitorar opositores.
- Guilherme Marques de Almeida – tenente-coronel do Exército; mensagens, vídeos e áudios indicam que tentava sustentar a narrativa falsa de fraude nas eleições de 2022.
- Reginaldo Vieira de Abreu – coronel do Exército; acusado de manipular relatórios oficiais e criar um “gabinete de crise” para atuar após o golpe.
- Marcelo Araújo Bormevet – policial federal e ex-chefe do CIN da Abin; teria usado ilegalmente recursos de inteligência para monitorar opositores e indicar alvos para a estrutura paralela da agência.
- Carlos Cesar Rocha – fundador do Instituto Voto Legal; elaborou um relatório com supostas falhas nas urnas, que foi usado para justificar a anulação de votos e difundido publicamente, mesmo sabendo que os dados eram falsos.
Os seis primeiros réus foram condenados pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência, grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. Carlos Cesar Rocha, por sua vez, foi condenado por organização criminosa armada e tentativa de abolição do Estado de Direito.
Leia também>> Como a desinformação sustentou tentativa de golpe que transformou Bolsonaro em réu
As acusações da PGR
A Procuradoria-Geral da República (PGR) destacou a gravidade das ações e a articulação da desinformação. O procurador-geral Paulo Gonet afirmou que “foi por meio da contribuição deste núcleo de acusados que a organização criminosa elaborou e disseminou narrativas falsas, dando surgimento e impulso à instabilidade social ensejadora da ruptura institucional.”
Segundo a PGR, o grupo utilizou estrutura estatal e redes sociais para difundir informações falsas sobre autoridades e o sistema de votação, mantendo a estratégia mesmo após a derrota eleitoral e contando com uma célula paralela na Abin. Gonet reforçou que membros “esporadicamente ativos” e “institucionalmente ativos” podem responder pelos crimes cometidos em conjunto com os objetivos da organização.
As defesas, por sua vez, negaram que os acusados tenham participado ativamente da propagação de notícias falsas ou de ataques virtuais, pedindo a absolvição de todos. Entre os principais argumentos, destacaram-se a ausência de vínculo com outros réus, a limitada participação em algumas ações, a desvinculação temporal das condutas imputadas e a falta de ciência integral sobre os documentos manipulados.
Para especialistas, o julgamento expõe o papel central das redes de desinformação na ameaça à democracia. Para Beto Vasques, “as condenações evidenciam a indissociabilidade das redes de desinformação com os projetos autocráticos contemporâneos em todo o planeta. E mais, evidenciam sobretudo como as plataformas digitais são a condição de possibilidade para que os processos de erosão democrática e radicalização política ocorram.”
O desfecho: os votos dos ministros
O STF condenou, por quatro votos a um, os réus do núcleo 4, com penas que variam de sete anos e seis meses a 17 anos de reclusão. O único a divergir foi o ministro Luiz Fux, que absolveu todos, argumentando que não há elementos suficientes que vinculem os acusados aos atos de 8 de janeiro de 2023.
O relator Alexandre de Moraes destacou que seis dos réus devem responder por todos os crimes imputados: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, e deterioração de patrimônio tombado. A exceção foi Carlos Rocha, cuja participação se limitou ao início das ações, sem provas de avanço em atos posteriores.
Moraes afirmou que “houve a contribuição de cada um dos réus para a disseminação de informações falsas e enganosas, promovendo ataques virtuais. Isso configura o modus operandi das denominadas milícias digitais, focadas em atacar as instituições democráticas, visando a ruptura constitucional e a instalação de um regime de exceção.”
Moraes também citou as eleições presidenciais do próximo ano, afirmando que “todos que insistem em desinformação devem ficar atentos já com esse precedente do STF”. O ministro completou: “fica o alerta para que cessem essas atividades nas eleições do ano que vem”.
O ministro Cristiano Zanin reforçou que os réus integravam uma organização criminosa destinada a manipular o sentimento popular contra as instituições e o sistema eleitoral, mantendo o mesmo entendimento de Moraes quanto a Carlos Rocha.
A ministra Cármen Lúcia afirmou que a PGR comprovou que o grupo atuou de forma estruturada, adubando o terreno para a desconfiança na democracia e a instabilidade social, enquanto o ministro Flávio Dino ressaltou que as provas, incluindo delações, trocas de mensagens e registros de comunicação, evidenciam a participação consciente dos réus na empreitada criminosa, destacando a necessidade de analisar o conjunto probatório de forma integrada.
Beto Vasques avalia que “a posição do STF revela a robustez das instituições de justiça e do Estado Democrático de Direito brasileiros frente ao que o pesquisador ítalo-suíço Giuliano da Empoli denominou de predadores, ou seja, o conluio entre candidatos a líderes autocratas e magnatas das plataformas digitais”. Para ele, a firmeza dos ministros e as penas aplicadas representam um “desestímulo contundente a novas tentativas golpistas sustentadas por desinformação coordenada contra a integridade do sistema eleitoral”.
Ao mesmo tempo, Vasques ressalta a necessidade de medidas articuladas para coibir práticas desinformativas, sobretudo em nível institucional. Segundo ele, é “fundamental e urgente avançar em iniciativas de regulação das plataformas, promoção da literacia mediática e fortalecimento da independência do jornalismo”.
Desdobramentos
As condenações do núcleo 4 não resultam em prisão imediata, e as defesas ainda podem recorrer das decisões. Com as recentes sentenças, o STF já condenou 15 réus pela trama golpista: além dos sete do núcleo 4, também foram condenados outros oito que pertencem ao núcleo 1.
O julgamento do núcleo 3 está marcado para 11 de novembro, enquanto o núcleo 2 será apreciado a partir de 9 de dezembro. O núcleo 5, que inclui o empresário Paulo Figueiredo, neto do ex-presidente da ditadura João Figueiredo, ainda não tem data definida; ele reside nos Estados Unidos e não apresentou defesa até o momento.
