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Viena Filmes

abr 29, 2024 | Pontos de Vista

Quando comentar no meu feed, imagine que está no quintal da minha casa

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Viena Filmes
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Ok, vamos partir do princípio de que discurso de ódio não exista e que falar o que se pensa nas plataformas digitais é, na prática, “liberdade de expressão” e vamos ainda, olhar criticamente para pesquisadores e instituições voltadas para a pauta de combate à desinformação e questionar se o que fazem é promover um discurso que legaliza a censura, qualificando indiscriminadamente quase tudo como “desinformação”. Será mesmo que isso faz sentido?

Bom, para começar a tratar desse tema, proponho que façamos o seguinte exercício: vamos imaginar que cada perfil de rede social é uma segunda casa que possuímos. Temos as nossas casas materiais, onde moramos, praticamos e protegemos nossa privacidade e nossos familiares, e temos as nossas “casas digitais”, onde existimos para nos relacionar socialmente no ambiente web. Certo? Afinal é disso que se trata uma rede social, como o próprio nome diz.

Logo de início, grita em meus pensamentos uma pergunta: nos relacionar socialmente é o mesmo que usarmos o espaço para ver e sermos vistos? O mesmo que expor tudo o que fazemos e pensamos diariamente? Postar sobre todos os lugares onde vamos e com quem estamos? Curtir tudo o que passa no nosso feed? Opinar compulsivamente? Aguardar que curtam tudo o que compartilhamos ansiosamente? Ficarmos frustrados quando assim não acontece? Ofender àqueles que postam coisas com as quais não concordamos? Comentar de forma raivosa sobre as postagens que nos desagradam? Ou será que estamos fazendo um mau uso das redes sociais? Para dizer o mínimo… 

Se na casa material temos um quintalzinho, uma varanda, sacadinha ou simplesmente uma janela para ver a rua, sabemos que dali daquele pedaço para dentro, qualquer pessoa que entre sem ser convidado está invadindo nossa casa. Se meu vizinho resolveu falar alto na porta de minha casa, para que eu seja obrigada a ouvir sua opinião, ou decida colocar um cocô, saco de lixo ou vomitar em frente a minha porta, para demonstrar que não apenas não concorda com minha forma de pensar ou agir, como ainda a repugna. Vai estar tudo bem? Ou tais atitudes serão dignas de repreensão e quiçá punição? A quem eu deverei recorrer numa situação como esta? À Administração do condomínio? Ao Tribunal de pequenas causas? Procurar um advogado que defenda meu espaço e proteja minha privacidade? Sim ou não?

Se sua resposta foi sim, continua aqui na minha linha de raciocínio e pensa comigo: se esse mesmo vizinho entrar no meu perfil de rede social e colocar um comentário inadequado, um texto agressivo, repleto de caixa alta como se estivesse vociferando, um emoji de cocô ou um gif animado de pessoa vomitando, tá tudo bem? Eu devo aceitar e não tomar nenhuma atitude? Repreendê-lo ou denunciar sua atitude para a plataforma em questão é censurar sua liberdade de expressão??? 

E todo o mal causado para a pessoa que foi ofendida publicamente? Porque sim, isso é ofensa pública.

O discurso de ódio nas redes sociais é real e pode ter consequências gravíssimas na vida de quem sofre desprezo, humilhação, violência verbal, imagética ou qualquer tipo de agravo em seu “quintal digital”, podendo chegar a casos extremos de cyber bullying e ameaças que levam à morte. E diante desses casos extremos, fica impossível negar o quanto nossas vidas online e offline são a mesma vida, mesmo que em duas esferas distintas. Logo, o que é incômodo, não recomendável, falta de educação e até mesmo crime numa esfera é também na outra. 

Por tudo isso, o argumento de que o discurso de ódio não existe, portanto, não se sustenta. Ele não somente existe, como há um vasto debate em torno de sua existência com definições claras sobre como atua. Em resumo, discurso de ódio é a manifestação de ideias que incitam discriminação racial, social ou religiosa voltada a  determinados grupos sociais, na maioria das vezes, minorias. E o debate se amplia ainda mais quando evocamos condições de gênero, orientação sexual, peso, algum tipo de deficiência e classe social.

Se você o utiliza, te provoco a refletir sobre: e se fosse com você, sua filha, seu filho, ou mãe, no quintal material ou digital de cada um?


A associação do discurso de ódio à liberdade de expressão vem de uma falta de compreensão sobre o impacto que as palavras, imagens e ações podem ter sobre aqueles que são alvo. Ignorar ou minimizar a existência do discurso de ódio abre caminhos para sua ampla disseminação e torna cada dia mais difícil combatê-lo. Negá-lo, portanto, é uma atitude irresponsável e insensível que serve de alimento à cultura de desinformação. Sim, dela mesma. Tema central na vida social hoje e que uma grande parte da sociedade vem tentando igualmente negar a existência.

Ódio, desinformação e suas consequências sociais

Podemos afirmar, sem medo, que o ódio nunca esteve tão cotidianamente infiltrado em nossas pautas, conversas e relações. Olhamos em volta e vemos famílias partidas, amizades rompidas, pessoas vivendo ressentidas, sem amor, solitárias, cada dia mais azedas e totalmente dominadas pelas tretas que correm nas veias das redes sociais. 

A curiosidade mórbida que sempre parou o ser humano diante de um acidente de trânsito ou de uma briga entre vizinhos, agora está todos os dias ao alcance das mãos, num rolo infinito de confrontos, litígios, desavenças e discórdias. As pessoas ficam ávidas para saber qual vai ser o conflito do dia. E quando não há um que seja intenso o suficiente para superar o da véspera, mantém-se acesa a chama do ódio que eclodiu no dia anterior por mais algum tempo. 

E assim temos vivido cotidianamente, com ódio e à mercê do ódio, irados, ansiosos, explosivos. A proximidade do ódio também pode ser percebida nas opções de lazer e entretenimento fora das redes. Qual é o mote do reality big brother? E o que são as propagandas das séries do GloboPlay??? O Brasil tem produzido entretenimento regado à tensão, brigas, violência, crueldade, sustos, adrenalina à tope, como nunca antes. Parece que o lema é prender a atenção do espectador pela tensão extrema. E podem ter certeza, isso traz sérias consequências para a forma como nos relacionamos.

Nesse contexto, observa-se uma nova onda nas redes sociais atualmente: a de olhar criticamente para pesquisadores e instituições voltadas para a pauta do combate à desinformação e nesse chamado “olhar crítico”, o que vemos, na prática, é uma torrente de ódio que busca desqualificar profissionais e organizações que contribuem de forma responsável para o debate social, buscando clarear o caos informacional em que vivemos. A propósito, pesquisadores tornou-se um grupo preferencial de ataques nas redes sociais, junto com jornalistas, professores e artistas.

Nessa nova estratégia discursiva que ganha força, a meta é relacionar o combate à desinformação com a ideia de legalização da censura, a partir da alegação de que quase tudo vem sendo qualificado  como informação falsa e desinformação hoje em dia.

O que ocorre, entretanto, é que a polarização extrema em que vivemos, coloca de um lado o pessoal que produz desinformação e defende discurso de ódio como liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que, estrategicamente e com método, tenta reputar os organismos que atuam no combate ao problema como “rede de censura”. 

Profissionais ligados às melhores universidades e centros de produção de saber trabalham arduamente com monitoramento, análise de dados e tradução desses dados para o público em geral, são atacados em seus perfis e na vida pessoal. A miríade de comentários em fios, posts e vídeos é covarde, os autores e autoras escondem-se por trás não apenas das telas, como de codinomes, emojis  e pseudônimos para agredir. Atitude que, no mundo off-line, jamais seria tolerada.

Argumentos que mencionam, por exemplo, o recebimento de financiamento provenientes de instituições internacionais de fomento à pesquisa, buscam descredibilizar a notoriedade desses profissionais e organizações, afirmando de forma lacônica que estes recebem “capital estrangeiro”. Hahahahaha… Qualquer semelhança com o que tentaram fazer com a Lei Rouanet não é mera coincidência. Quem é pesquisador, no entanto, sabe bem o quão criterioso e rigoroso é um edital de seleção de fomento e mais ainda a sua prestação de contas! Seja contemplado com uma bolsa da Capes ou do Cnpq e veja você mesmo. Trata-se de algo dificílimo de se obter e que exige um grande lastro de publicações e pesquisas de referência para atender minimamente as condições de concorrência.

Por isso tudo e muito mais que não consegui expor nesse texto, proponho o esforço coletivo de ocuparmos o quintal digital do outro, da mesma forma que ocuparemos o seu quintal material. Entre quanto for convidado, seja cauteloso ao expor seus pensamento e sentimentos, não agrida de forma que não gostaria de ser agredido e mais que tudo, reveja para onde a polarização te levou. De quem você se afastou? Quem são e por onde andam as pessoas que você ama e já não se relaciona mais porque não é capaz de tolerar a escolha ideológica que fizeram? Para muito além da regulação das plataformas, regule seus ímpetos, meça sua raiva, avalie se você domina o seu uso das redes, ou se as redes dominam seu uso.

Respire, reflita e poste no quintal alheio sabendo disso.

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Lena Benz

Produtora Editorial e jornalista, com doutorado em Comunicação e Cultura. Trabalha com design on e offline e já lecionou na área. Tem interesse pelo papel preponderante do design na cultura digital. É designer do *desinformante.

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