Estamos às vésperas do aniversário de uma das maiores tragédias climáticas do país. Há um ano, em 27 de abril de 2024, as chuvas intensas em Santa Cruz do Sul marcaram o começo de dez dias ininterruptos de temporais que elevaram a vazão dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos e Gravataí, no Rio Grande do Sul. A força das águas foi inédita e provocou estado de calamidade e emergência em 418 municípios do estado, deixando 183 mortos, 27 desaparecidos e quase 100 mil famílias desabrigadas.
Uma consequência ainda não foi completamente contabilizada: a tragédia gaúcha foi uma inflexão histórica no debate sobre a integridade da informação sobre clima e meio ambiente no Brasil.
A comoção pelas vítimas nas redes sociais foi acompanhada por uma enxurrada de mentiras: golpes do pix, vídeos falsos criados por inteligência artificial ou antigos e fora de contexto, ataques infundados a quem estava realizando buscas por sobreviventes ou prestando socorro, falsas acusações de desvio ou taxação de doações… Era tanta mentira que o maior jornal da TV brasileira passou a fazer checagem de notícias em tempo real na cobertura diária, e praticamente todas as agências de checagem do país criaram páginas especiais dedicadas ao que estava acontecendo no Rio Grande do Sul.
A zona de perigo entre desinformação e clima nunca foi tão explícita
Vale estabelecermos dois pontos essenciais antes de seguirmos. O primeiro: eventos climáticos extremos como as enchentes no Sul — e secas prolongadas, ondas de calor ou frio, ciclones tropicais e extratropicais, vendavais e tornados — não são provocados pelas mudanças climáticas, mas estão ficando mais frequentes e mais intensos por causa delas. E o segundo: já não há mais dúvidas sobre a influência do homem no aquecimento do planeta: o consenso é de mais de 99%.
A FALA, com o projeto Mentira Tem Preço, estuda as causas e as consequências da desinformação climática e socioambiental desde 2020. Nesse tempo, descobrimos que existe uma engrenagem funcionando 24×7 para descredibilizar a ciência do clima e para atacar quem defende o meio ambiente. Chamamos ela de cadeia produtiva da mentira. Para que ela funcione bem, são necessários algoritmos operando sem nenhuma transparência ou regulamentação, empresas e influenciadores lucrando com publicidade e… nós, as vítimas, que, com cliques e compartilhamentos, premiamos esse sistema com poder, influência e dinheiro.
As enchentes gaúchas mostraram com nitidez o funcionamento dessa engrenagem
A coalizão internacional Climate Action Against Disinformation (CAAD) desenvolveu, com a FALA, um documento abrangente sobre o que é a desinformação climática e socioambiental. Em resumo, trata-se do conteúdo enganoso que (1) questiona a existência ou impactos das mudanças climáticas, a influência humana inequívoca nelas e a necessidade de medidas urgentes; (2) deturpa dados científicos para minar a confiança na ciência do clima e nas instituições relacionadas; ou (3) divulga falsos esforços climáticos que, na verdade, pioram a situação ou violam o consenso científico sobre medidas eficazes.
Durante a tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul, o monitoramento do Mentira Tem Preço, realizado em parceria com a unidade de pesquisas da CAAD, identificou pelo menos três teorias da conspiração bizarras — e muito populares:
- as enchentes foram provocadas artificialmente pelo governo com a abertura de comportas;
- o temporal foi fabricado pelos “globalistas” com a utilização de antenas HAARP;
- as mortes foram resultado de um ritual satânico realizado pela cantora Madonna em seu show na praia de Copacabana, assunto do momento na época das primeiras notícias sobre os alagamentos.
Quando a engrenagem de mentiras cria falsas explicações para um evento climático extremo — e falsos culpados —, atrasa a adoção de medidas que realmente funcionariam para evitar que eles ocorram com tanta frequência e intensidade, ou medidas que aumentem a resiliência das cidades a estes eventos. Mesmo que o ritual satânico da Madonna e as antenas HAARP em si não convençam muita gente — e, infelizmente, eles convencem, sim —, quem usa estas explicações conspiratórias ganha alcance nas redes sociais, o que rende novos seguidores, dinheiro de publicidade e até projeção política.
No mundo, a cadeia produtiva da mentira sobre o clima tem contornos mais bem definidos e os protagonistas óbvios: envolve principalmente as gigantes de combustíveis fósseis (“Big Oil”), principais vilãs do aquecimento global; as gigantes da tecnologia (“Big Tech”), que lucram e distribuem lucro com a difusão das mentiras; e as gigantes da publicidade, que injetam grana na operação.
No Brasil, o cenário é mais complexo. Nossa “Big Oil” é a Petrobras, paixão nacional e parte da identidade brasileira. As gigantes do agronegócio são as maiores responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa do país. E o palco principal são as disputas pela terra. Por isso, na linha de frente, além de cientistas e ativistas do clima, temos os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, que defendem o meio ambiente com os próprios corpos, e grupos que lutam pelo manejo sustentável da terra. Na engrenagem da desinformação climática, são todos tratados como terroristas.
Como enfrentar uma rede que funciona tão bem?
Infelizmente, não existe fórmula mágica ou ritual para isso. O que funciona é a adoção de políticas públicas para defender e garantir a integridade da informação sobre o clima, e com protagonismo da sociedade civil. Demos alguns passos importantes nessa direção desde a tragédia do Rio Grande do Sul.
Em novembro de 2024, durante a cúpula do G20 no Rio de Janeiro, o governo brasileiro, em parceria com a ONU e a UNESCO, lançou a Iniciativa Global para a Integridade da Informação sobre Mudanças do Clima. A proposta teve a adesão de seis países desde a largada — Chile, Dinamarca, França, Marrocos, Reino Unido e Suécia — e inclui um fundo que vai financiar projetos na área.
E, no último dia 25 de março de 2025, outro evento, o Summit de Integridade da Informação Climática, reuniu em Brasília representantes de governos, embaixadas, ONU, UNESCO, organizações da sociedade civil, empresas, imprensa, comunicadores dos territórios, lideranças e cientistas em Brasília para discutir o tema e pensar em soluções conjuntas. O Summit foi realizado pela FALA em parceria com a Conscious Advertising Network (CAN) e com a coalizão Climate Action Against Disinformation (CAAD). Se você perdeu, os vídeos com todas as palestras já estão disponíveis no canal da FALA no YouTube.
Saímos de lá com pelo menos dois compromissos muito importantes:
- a integridade da informação sobre o clima e o meio ambiente vai ser um dos pilares temáticos da COP30, a conferência do clima da ONU que será realizada em novembro de 2025 em Belém, no Pará.
- a União Europeia anunciou que está avançando nos trâmites para formalizar seu compromisso com a Iniciativa Global para a Integridade da Informação sobre Mudanças do Clima e contribuir financeiramente.
A COP30 em Belém surge como uma oportunidade para que o Brasil lidere a discussão global sobre os perigos da desinformação climática e socioambiental, além das soluções necessárias para enfrentá-la. Até lá, fazemos um convite para que você junte-se a nós para pensar em como reforçar a integridade da informação sobre o clima. A FALA lançou, durante o nosso summit, o Observatório de Integridade da Informação sobre Clima e Meio Ambiente. Dele, nasceu a newsletter Oii, que é um convite — em português e em inglês, já pode assinar — para todo mundo interessado em pensar soluções de forma coletiva. Serão edições mensais até a COP de Belém, com frequência ainda maior nas semanas que antecedem a conferência.
Da mesma forma que cidades precisam de resiliência para enfrentar eventos climáticos extremos como as enchentes no Rio Grande do Sul, a sociedade precisa estar muito bem preparada contra a cadeia produtiva de mentiras.