Início 9 Destaques 9 Denúncia de Felca expõe exploração de crianças online e reacende debate sobre regulação digital

Últimas notícias

Reprodução: YouTube

ago 13, 2025 | Destaques, geral, Notícias

Denúncia de Felca expõe exploração de crianças online e reacende debate sobre regulação digital

Reprodução: YouTube
COMPARTILHAR:

“Adultização” e exploração de menores na internet. O tema ganhou força na última semana após um vídeo de denúncia do youtuber Felca, como é conhecido Felipe Bressanim. Na gravação, ele expõe produtores de conteúdo e cobra das plataformas digitais a responsabilidade por permitir, e até monetizar, esses vídeos.

As redes mais citadas foram o Instagram e o Telegram, descritas como peças de um sistema coordenado: no Instagram, vídeos curtos servem como vitrine; nos comentários, pedófilos usam uma linguagem codificada para se identificar e direcionar interessados a grupos no Telegram, onde ocorre a divulgação e comercialização ilegal de material de pornografia infantil.

A repercussão levantou questões sobre o real alcance de influenciadores para provocar mudanças, os limites dessa atuação e o risco de que a mobilização fique restrita ao engajamento online, sem ações concretas.

A pressão já chegou ao campo político, unindo diferentes espectros partidários e reacendendo debates sobre o Projeto de Lei 2628/2022 e novas propostas de proteção online para crianças.

Guilherme Alves, diretor de projetos na SaferNet, destaca que, embora não seja novo, o debate sobre segurança digital de crianças e adolescentes ganha força com o aumento do uso de redes sociais, aplicativos e internet rápida, que expõem esse público a riscos e conteúdos nocivos.

Para ele, “não é possível discutir saúde e proteção das crianças sem abordar o primeiro contato com a tecnologia, regras de uso e uma lógica de cuidado compartilhada pela sociedade”.

Repercussão política 

O presidente da Câmara de Deputados, Hugo Motta (Republicanos/PB), classificou o tema como urgente e prometeu pautar projetos relacionados à adultização e à pornografia infantil na internet.

Deputados como Guilherme Boulos (PSOL/SP) e Erika Hilton (PSOL/SP) cobraram atuação da Polícia Federal e maior responsabilização das plataformas digitais, enquanto Nikolas Ferreira (PL/MG) destacou a dimensão do problema exposto.

Segundo levantamento do Núcleo, no site da Câmara, desde 2015 foram apresentados ao menos 75 projetos de lei sobre o tema, 25 deles depois da repercussão do vídeo do influenciador. As propostas incluem alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Marco Civil da Internet para ampliar punições e fechar lacunas legais.

Entre os textos prontos para votação estão:

  • PL 4789/2023: endurece penas para crimes de pedofilia e prevê punições específicas para a produção ou divulgação de vídeos de estupro de menores;
  • PL 2514/2015: derivado da CPI da Pedofilia, que estabelece novas regras para preservação de dados por provedores a fim de facilitar investigações.

Também está em tramitação na Comissão de Comunicação da Câmara o texto do PL 2628/2022 – que busca criar um marco legal para reforçar a proteção digital de crianças e adolescentes – com previsão de parecer ainda este ano.

O projeto, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB/SE), já foi aprovado por unanimidade no Senado, e determina que plataformas adotem medidas como verificação de idade, controle parental, padrões de segurança ativados por padrão, proibição do perfilamento para publicidade e remoção imediata de conteúdos nocivos, incluindo pornografia infantil e cyberbullying.

Parlamentares já protocolaram um pedido de urgência antes mesmo do recesso, abrindo caminho para que o projeto seja votado diretamente no plenário, sem passar por novas comissões.

Para Rodrigo Nejm, especialista em educação do Instituto Alana, a atenção gerada pela repercussão do tema pode pressionar o debate, mas também traz riscos: “Há uma preocupação de que a comoção momentânea atrapalhe o fluxo de construção coletiva feito desde 2022 e comprometa o consenso atual. O PL 2.628 não resolve todos os problemas, mas é sólido e suficiente para darmos um passo histórico e iniciarmos uma agenda mais robusta de proteção às crianças. Precisamos avançar nele.”

A Data Privacy Brasil também publicou uma nota pública reforçando o apoio à aprovação do PL 2628. “As denúncias sobre os riscos aos direitos das crianças e dos adolescentes são graves e exigem uma resposta de toda a sociedade. A investigação conduzida por Felca mostra problemas graves de exploração comercial de crianças, violação dos direitos fundamentais de privacidade, sexualização precoce e ausência de moderação de conteúdo em situações de exposição, abuso sexual de crianças e pedofilia”, trouxe a nota.

Leia também>> Regulação digital: o que pode avançar ainda este ano no Congresso

Debate sobre proteção online ganha força

A mudança de interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, decidida em junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já prevê ampliação de responsabilidade das plataformas, impondo um “dever de cuidado” para a atuação preventiva na remoção de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes.

No Executivo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva informou que o governo enviará nesta quarta-feira (13) ao Congresso Nacional um projeto de lei para regulamentar o funcionamento de redes sociais direcionadas a crianças e adolescentes. De acordo com ele, a proposta vem sendo discutida há dois meses na Casa Civil e será concluída após reunião marcada para às 15h, que deverá sanar divergências entre ministros sobre o texto.

No Senado, a denúncia feita por Felca também provocou reação. Os senadores Damares Alves (Republicanos-DF) e Jaime Bagattoli (PL-RO) protocolaram pedido de criação de uma CPI para investigar a atuação de influenciadores e plataformas na disseminação de conteúdos prejudiciais a menores.

Bagattoli antecipou que pretende convocar Hytalo Santos, um dos influenciadores citados por Felca, para depor. O parlamentar ainda destacou que, em muitos casos, famílias em situação de vulnerabilidade chegam a emancipar crianças para permitir sua participação em produções digitais, atraídas pela promessa de ganhos financeiros.

O que o vídeo de Felca revela

No vídeo que já soma mais de 32 milhões de visualizações, Felca começa apresentando uma denúncia explícita sobre a exploração comercial de crianças e adolescentes por parte de seus próprios pais, que submetem os menores a situações constrangedoras e violentas nas redes sociais.

Um dos casos mais emblemáticos citados é o de Hytalo Santos. O influenciador é acusado de organizar diversos “reality shows”, onde exibia a convivência dele com diversas crianças e adolescentes, com dinâmicas e brincadeiras de cunho sexual. 

Kamylinha Silva, uma das adolescentes mais expostas por Hytalo, começou a aparecer em 2018, aos 12 anos. Hoje, ainda menor de idade, ela participa de shows e apresentações com teor sensual.

A “adultização” sob a perspectiva do empreendedorismo digital precoce também é abordada, em uma crítica a popularização de podcasters mirins que vendem discursos de meritocracia, incentivando, por exemplo, a saída da escola e desvalorizando o conhecimento científico e filosófico.

Rodrigo Nejm avalia que o vídeo é “muito didático” e conseguiu “mobilizar adolescentes, famílias e até o Congresso”, mostrando a força do conteúdo digital na discussão pública. 

Já Guilherme Alves ressalta que “é raro ver influenciadores com milhões de seguidores tratando temas sensíveis com responsabilidade”, o que torna o impacto dessa produção ainda mais relevante.

Como os algoritmos alimentam a exploração infantil nas redes

O vídeo assume um tom educativo ao mostrar, na prática, como funcionam as lógicas comerciais de engajamento dos algoritmos nas redes sociais. Felca cria um perfil novo no Instagram e demonstra, a partir da busca e interação com publicações deste cunho, como o algoritmo passa a recomendar conteúdos envolvendo crianças, seguindo a lógica de prender a atenção do usuário na tela “infinita” de conteúdos.

Esses conteúdos são dominados por comentários de pedófilos que se atraem mutuamente, usando uma linguagem específica para despistar investigações policiais – incluindo o uso frequente de gifs e termos codificados que mascaram suas reais intenções.

Nirvana Lima, doutoranda em Comunicação e integrante da Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (RECRIA), aponta que a exposição sistemática e monetizada de influenciadores mirins alimenta um ecossistema econômico robusto:

“Agências de publicidade e de agenciamento de celebridades mirins; assessorias que intermediam influenciadores e marcas; consultorias voltadas à influencer economy; e programas de formação em marketing de influência. No centro dessa engrenagem capitalizada, estão as plataformas de redes sociais”, afirma.

Rodrigo Nejm analisa que esse cenário expõe um privilégio inaceitável concedido às big techs. “As plataformas digitais gozam de uma impunidade que não atribuímos a nenhuma outra indústria, especialmente quando falamos de crianças. Ninguém tolera esse tipo de violência num shopping ou num bar e não há por que tolerar nas redes sociais”, afirma.

No contexto em que empresas de tecnologia alegam risco de censura para evitar ampliar sua responsabilidade, argumento que tem sido reforçado por pressões internacionais, especialmente dos Estados Unidos, sobre decisões do Judiciário brasileiro, Nejm é categórico: 

“A exploração sexual de crianças na internet gera receita para empresas de tecnologia. Exigir atuação preventiva e responsável não é censura; é o mínimo para impedir que crianças sejam exploradas como mercadoria, como produtos nas redes sociais”, pontuou.

Violência sexual generificada

Embora o vídeo de Felca não mencione explicitamente a questão de gênero, fica evidente que nos exemplos apresentados a maioria das vítimas da superexposição sexualizada são meninas.

Essa é uma realidade confirmada por dados oficiais, como o levantamento da Fundação Abrinq sobre o Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025. O estudo revela que, entre as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, 87,1% das vítimas em 2023 foram do sexo feminino.

O problema é ainda mais preocupante quando olhamos para o contexto digital. O Brasil está na quinta posição em um ranking global de 51 países com o maior número de denúncias de abuso sexual infantil na internet. Entre 2022 e 2024, o país saltou da 27ª para essa colocação, segundo o relatório da rede internacional InHope, que monitora e combate crimes digitais contra menores.

Para a pesquisadora Nirvana Lima, em uma sociedade marcada pela objetificação do corpo feminino, conteúdos sexualizados encontram terreno fértil nos algoritmos, que refletem e amplificam padrões históricos de desigualdade e violência de gênero. 

“O impacto é ainda mais grave quando se consideram as violências interseccionais: meninas negras, indígenas, periféricas ou LGBTQIA+ enfrentam vulnerabilidades acumuladas, com riscos que vão da exploração sexual até uma ampla gama de cibercrimes. O ambiente digital, assim, não apenas reproduz, mas potencializa estruturas de opressão que já operam no mundo offline”, explicou.

Cresce o volume de denúncias de exploração infantil online

A SaferNet dispõe, há 19 anos, da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, que em 2023 registrou 71.867 novas denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil na internet – o maior número já recebido.

Para Guilherme Alves, o aumento mostra que “as pessoas podem estar conhecendo mais esses canais e tomando mais ações de denúncia, o que é positivo”. Ao mesmo tempo, ele alerta que ainda há uma grande subnotificação: “Existem conteúdos que circulam em aplicativos de mensagem, grupos fechados ou fóruns, em que é muito mais difícil fazer uma denúncia”.

Alves ressalta que a violência contra crianças e adolescentes não se limita a imagens de cunho sexual: “Falamos também de conteúdos que podem ser utilizados para exploração, mesmo sem conotação sexual direta, como vídeos de crianças postados por familiares. Hoje, tecnologias como inteligência artificial podem manipular esses conteúdos, aumentando ainda mais os riscos apontados por conteúdos como o de Felca”.

Consequências e ameaças após as denúncias

Felca denunciou oficialmente os casos apresentados no vídeo à Polícia Federal, reforçando o apelo para que outras pessoas também façam denúncias. Segundo ele, “a internet deve ser um lugar de medo para os pedófilos”.

Em entrevista ao PodDelas, Felca revelou que passou a receber diversas ameaças desde então. “Comecei a andar com carro blindado, com segurança, por causa das ameaças”, contou. Ele também afirmou que o ponto de virada na escalada das ameaças foi um vídeo em que denunciou propagandas de casas de apostas e que agora se prepara para os processos que deve receber frutos do vídeo da denúncia da suposta exploração de menores nas redes sociais.

Hytalo Santos já responde, desde 2024, a uma denúncia do Ministério Público da Paraíba (MPPB) por crimes semelhantes. Após as denúncias feitas por Felca, as contas de Hytalo no Instagram e TikTok foram desativadas. Juntas, suas redes acumulavam mais de 20 milhões de seguidores.

.

COMPARTILHAR: