A dois meses das eleições presidenciais, o conteúdo antidemocrático e com incitação à desobediência civil explodiu nos grupos abertos de extrema direita no Telegram. Especialmente a partir de junho, discursos mais “moderados” como pedidos de apoio ao voto impresso deram lugar a discursos de incitação a um golpe de Estado, ou melhor, de “salvação da pátria”, com argumentação voltada para o “anticomunismo” (tal como no golpe militar de 1964). Mensagens destacam a ideia de que será preciso dar um contragolpe, isto é, salvar o Brasil antes que o PT e o STF apliquem um golpe de Estado através da “fraude eleitoral”.
Este é um dos destaques do relatório “Democracia Digital – Análise dos Ecossistemas de Desinformação no Telegram durante o processo eleitoral brasileiro de 2022”, coordenado pelos pesquisadores Leonardo Nascimento, doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia, Letícia Maria Costa da Nóbrega Cesarino, doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Paulo de Freitas Castro Fonseca, doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia.
Este relatório – o primeiro de três até as eleições – compreende a análise, entre janeiro a julho de 2022, de 5.385.369 mensagens em 156 grupos e 1.024.419 em 479 canais do Telegram, perfazendo um total de 6.409.788 mensagens de texto. Além disso, foram coletadas e analisadas 641.020 imagens compartilhadas no aplicativo Telegram.
As narrativas conspiratórias de caráter antidemocrático estão presentes desde janeiro, de forma pontual, tendo como alvos preferenciais o judiciário e o PT. Depois que a narrativa do voto impresso e auditável caiu por terra, a partir de junho, discorre o estudo, o conteúdo antidemocrático recrudesceu nestes grupos, conclamando o presidente Bolsonaro e as Forças Armadas a aniquilarem `os inimigos´. Enquetes não oficiais apontam que a população confiaria mais nas Forças Armadas do que no STF e no TSE. Em paralelo, seguem as narrativas de que houve fraude nas últimas eleições e que, portanto, o mesmo poderá ocorrer nas eleições deste ano.
O movimento em torno do 7 de setembro se organiza neste contexto em que os cidadãos dariam `permissão´para ações radicais por meio do Executivo e do Exército. Percebe-se um forte esforço para fomentar a percepção de ameaça e de vitimização, que justifica a necessidade de ação imediata, aponta o relatório.
Os 10 mediadores da desinformação
Neste ecossistema de desinformação, dez usuários foram identificados como os mais ativos nos grupos e canais. Por questões de proteção da privacidade dos dados, os pesquisadores não revelaram os nomes deles, mas garantiram que são facilmente identificáveis no Telegram. “Estas pessoas respondem dúvidas, não deixam silenciar o fluxo de mensagens, postam links variados, fazendo as pessoas pularem de uma rede para outra de forma que fica impossível para as plataformas banir o conteúdo desinformativo”, explicou Leonardo Nascimento, da UFBA.
A ação destes mediadores confirma o que outras pesquisas já apontaram que um aplicativo outrora desenhado para comunicação interpessoal se transformou num veículo de comunicação de massa. Os dez talkatives com maior atividade de janeiro a junho de 2022 encaminharam 240.512 mensagens, representando um percentual de 3,7% de todas as mensagens coletadas (6.409.788).
“O principal desafio é que o problema não é uma plataforma específica, é o conjunto das plataformas. É sistêmico, o buraco que a gente entra é o Telegram, mas podemos sair no Youtube, WhatsApp, no TikTok é o tempo todo isso acontecendo. Ou salvam ou mandam o link faz o papel de desinformação”, pontua Nascimento. A mensagem em que o presidente Bolsonaro expunha dados de uma investigação sigilosa e que o STF determinou ao Telegram que fosse apagada, por exemplo, é facilmente encontrável em outros grupos bolsonaristas como o B38, como a reportagem comprovou.
Veja outros destaques
Youtube, o campeão de links compartilhados
Nos grupos, nos últimos 6 meses, foram compartilhados 536.732 links de YouTube; 103.587 links de Telegram e 60.429 links de Twitter. Já nos canais foram compartilhados 40.016 links de YouTube; 22.264 links de Telegram e 13.302 links de Twitter. O Youtube é a plataforma mais mencionada no Telegram.
Antivacinas continuam ON
Uma observação importante no período analisado foi a persistência de temáticas conspiratórias e negacionistas ligadas à saúde e à pandemia, mesmo com o arrefecimento desta ao longo do ano.
Complô eleitoral
Narrativas conspiratórias de caráter antidemocrático conspiratório se intensificaram a partir de fevereiro. São frequentes afirmações sobre um suposto complô para fraudar as eleições e impedir a reeleição de Bolsonaro, indicando uma crescente repercussão de discursos que fomentam a desconfiança em relação às instituições responsáveis pelo processo eleitoral no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são frequentemente apresentados como “arqui-inimigos da democracia”, que estariam preparando uma fraude nas eleições para favorecer o candidato Luís Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores (PT).
Shadowban
A alteração de nomes de chats dos grupos e canais busca desviar da moderação ou contornar a buscabilidade das plataformas mais importantes. Para isso, empregam táticas como voldemorting, que pesquisadores definem como a estratégia de buscar outros nomes ao se referir aos “inimigos”. Assim, evitam enunciar de modo literal certos termos, substituindo-os por apelidos ou códigos (“picada” ou “inoculado”, ao invés de vacina), trocando caracteres ($TF ao invés de STF), inserindo emojis, ou virando palavras de cabeça pra baixo (o que, nas plataformas com feed algorítmico, também evita a geração de engajamento para o “inimigo”).
Apagamento sistemático de mensagens
Em dois dos maiores grupos monitorados foram realizados 32 eventos de apagamento de milhares de mensagens. A cada apagamento, um bot publicou o seguinte texto: “ Todas as mensagens do grupo foram apagadas.”. Assim, a desinformação já se espalhou e a plataforma não consegue rastrear conteúdos que ferem suas políticas.
Fechamento de grupos e canais
Após a ação do STF em relação ao Telegram, alguns grupos e canais foram completamente fechados, reabertos com o mesmo nome ou simplesmente pararam de realizar postagens. Além disso, reportagens sobre grupos e canais específicos, como por exemplo, grupos de namoro entre não vacinados e de vendas de armas e modelos 3d para produção de armamentos, provocaram o seu fechamento, com possível migração para grupos fechados.
Ascensão de plataformas redes alternativas
Com o aumento das campanhas de combate à desinformação promovidas pelo TSE, alguns usuários estão preferindo plataformas com menos restrições aos conteúdos e discursos extremistas e conspiratórios. Entre estas, houve crescimento de links e perfis para o GETTR.
Persistência do negacionismo pandêmico
Uma observação importante no período analisado foi a persistência de temáticas conspiratórias e negacionistas ligadas à saúde e à pandemia, mesmo com o arrefecimento desta ao longo do ano
Veja o estudo na íntegra aqui: