Cultura e informação são dimensões interdependentes. Em um país onde as vozes negras ainda enfrentam barreiras para ocupar espaços de produção simbólica e comunicacional, a democratização da cultura aparece também como um caminho para democratizar o acesso à informação.
A exclusão de pessoas negras dos meios de comunicação, das plataformas de visibilidade e dos circuitos de circulação de conhecimento reflete e reforça as desigualdades estruturais do país. Um retrato dessa desigualdade pode ser visto na pesquisa Raça, Gênero e Imprensa: Quem Escreve nos Principais Jornais do Brasil?, que mapeou o perfil dos profissionais dos três maiores jornais do país.
O levantamento mostra que 84,4% dos articulistas são brancos, enquanto pessoas pardas representam 6,1% e pessoas pretas apenas 3,4%. Quando se trata de textos de opinião, a sobrerrepresentação branca sobe para 90%.
No campo da publicidade digital, o cenário também é preocupante: o estudo Diversidade na comunicação de marcas em redes sociais 2023 registrou queda na presença de mulheres e pessoas negras em campanhas online, com a representação negra caindo de 34,8% para 31,6% em apenas um ano.
Esses dados evidenciam o que intelectuais negras vêm denunciando há décadas: o racismo estrutural não apenas exclui corpos, mas silencia narrativas. A teórica norte-americana bell hooks, em Olhares negros: raça e representação, descreve como as imagens e discursos produzidos pela mídia moldam percepções de valor e pertencimento, alimentando um “auto-ódio internalizado” em pessoas negras que crescem consumindo representações negativas ou estereotipadas da negritude.
No Brasil, a antropóloga Lélia Gonzalez definiu o racismo à brasileira como um “racismo por denegação”, um sistema que opera pela negação de sua própria existência. Essa forma de racismo se manifesta na recusa em reconhecer as desigualdades raciais e suas consequências sociais, como a ideologia do branqueamento, a repressão cultural e, também, a sub-representação de pessoas negras em diferentes espaços, incluindo os meios de comunicação.
Ampliar a diversidade entre quem produz e quem é ouvido torna-se, assim, um desafio central para a consolidação de uma democracia informacional.
Os papéis das iniciativas negras
A imprensa e a produção cultural negras têm há séculos desafiado esse imaginário. Desde o século XIX, jornais criados por e para pessoas negras se consolidaram como ferramentas de denúncia, debate e construção de identidade coletiva. Hoje, essa tradição se reinventa em múltiplos formatos: veículos digitais, coletivos de mídia, produções artísticas e eventos culturais; que reafirmam a potência da comunicação e da cultura como instrumentos de emancipação e democratização do conhecimento.
Nesse contexto que surge o Encontros Negros, projeto criado pela Umbu Comunicação & Cultura como uma resposta às narrativas hegemônicas sobre a negritude. Ao longo do tempo, o evento se transformou em um espaço permanente de reflexão e produção de conhecimento, articulando cultura, comunicação, educação, ciência e cidadania. Em 2025, chega à sua quarta edição em Salvador com o propósito de transformar a cidade mais preta fora da África em palco do pensamento negro brasileiro.
“Entendemos cultura, comunicação e acesso à informação como dimensões inseparáveis”, afirma Camilla França, mestre em Cultura e Sociedade e uma das diretoras da Umbu Comunicação & Cultura. “Trabalhar com essas três frentes é uma forma de ampliar repertórios, romper silêncios históricos e garantir que diferentes expressões e saberes estejam presentes nos espaços públicos de fala e decisão.”
Iniciativas como o Encontros Negros se somam a diversos outros esforços que buscam enfrentar as desigualdades informacionais e simbólicas no país. Como explica França, o evento “cria um espaço onde o pensamento negro contemporâneo é o centro, não a exceção”. Cada edição, explica Camilla, funciona como uma resposta concreta a um sistema que ainda tende a invisibilizar e marginalizar saberes não hegemônicos.
Os desafios na era digital
Pesquisas do Observatório do Racismo nas Redes, do Aláfia Lab, e a Linha do Tempo do Racismo Algorítmico, desenvolvida pelo pesquisador Tarcízio Silva, mostram que, embora o ambiente online amplie o alcance das vozes negras, ele também reproduz estruturas racistas históricas, agora traduzidas em códigos, algoritmos e novas linguagens digitais.
O Manual de Boas Práticas Antirracistas na Comunicação Digital, elaborado pela Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação em parceria com o Instituto Peregum, reforça que uma comunicação verdadeiramente plural precisa ser também antirracista. O documento apresenta diretrizes para combater estereótipos, desinformação e discursos discriminatórios, além de oferecer estratégias práticas para construir uma internet mais justa e representativa.
Para Mirtes Santa Rosa, publicitária e sócia-diretora da Umbu Comunicação e Cultura, esse é um movimento que une arte, cultura e ética informacional. “As iniciativas culturais negras têm um papel essencial na construção de uma comunicação mais responsável e plural”, afirma. Segundo ela, ao reconstruírem narrativas e reposicionarem sujeitos, essas produções “trazem novas perspectivas para o debate público”. Em tempos de desinformação, acrescenta, promover cultura é também promover responsabilidade comunicacional, garantindo que verdade, memória e diversidade ocupem espaço nas plataformas e nas mídias.
Fortalecer vozes negras é ampliar a democracia da informação
O Encontros Negros 2025, que acontece nos dias 6 e 7 de novembro, em Salvador, reúne artistas, pesquisadores, comunicadores e lideranças negras para debater identidade, ancestralidade, comunicação e futuro. Alguns dos nomes confirmados são MV Bill, escritor, rapper e ativista; Michel Alcoforado, antropólogo; Kmila CDD, cantora e compositora e Raoni Oliveira, jornalista.
A presença desses nomes e a diversidade de temas reforçam a importância da representatividade na construção da identidade negra e na circulação de conhecimento. Como explica a psicóloga clínica Prescila de Fátima Vieira Venâncio, em texto disponível no Geledés: “A representatividade entra como fator importante na construção da subjetividade e da identidade negra, onde os negros começaram a conquistar espaço na mídia, na política, na música e no cinema, inspirando não apenas as gerações mais jovens, mas toda a população negra.”
Para Santa Rosa, o evento vai além da programação cultural: “O Encontros Negros se propõe a ser um espaço de partilha, diálogo e ação concreta, reafirmando a diversidade como eixo estruturante da vida pública e do futuro que queremos construir. Construímos pontes entre saberes, conectamos vozes e criamos espaços onde o conhecimento negro possa circular de forma ampla, diversa e transformadora.”
França acrescenta que “fortalecer a comunicação e a cultura negras não é apenas celebrar a arte e a ancestralidade: é também ampliar a democracia informacional e garantir que narrativas plurais tenham espaço nos meios de comunicação e nas plataformas digitais”, finalizou.