Não há nada de novo em usar ações judiciais para silenciar e punir profissionais de mídia e empresas de mídia. O que é novo é o armamento de tais ações. A escalada da violência contra jornalistas em países latino-americanos pode ser sem precedentes. Nem mesmo durante regimes ditatoriais vimos tantos ataques e tão coordenados. E o pior: com a aceitação, conivência e até participação do público. Mas talvez o pior nem seja isso; talvez o pior seja que não estamos falando de regimes autoritários (pelo menos não oficialmente) na maioria dos casos. Estamos falando de democracias.
A América Latina está unida em uma das semelhanças mais trágicas: jornalistas e organizações de mídia estão sendo alvo de repetidos ataques, sejam eles perpetrados online, fisicamente ou legalmente. O ambiente digital e o surgimento de plataformas na base da polarização política que muitas das regiões enfrentam também podem estar no centro dessa escalada violenta. Contratar bots nas redes, campanhas de difamação e milícias digitais são a nova política do Estado contra jornalistas e imprensa livre. Além disso, o uso e abuso de leis novas ou já existentes – como leis elaboradas para punir difamação, calúnia e dano moral – estão em alta e prometem anos de luta, inquietação e até, em situações mais drásticas, o fechamento de organizações de mídia de notícias, o fim de uma carreira de jornalista, notas de retratação infames, prisão… uma lista interminável, na verdade.
Essas novas e renovadas formas de ataque somam-se a uma trágica história de violência contra a imprensa nos 20 países da região. Segundo dados do Índice Repórteres sem Fronteiras 2022, a maioria dos países da região apresenta níveis que variam de situações “problemáticas” em países como Brasil, Paraguai, Chile, Peru e Equador, a situações “difíceis” em países como como México, Guatemala, El Salvador, Bolívia e Colômbia. Países como Venezuela, Cuba e Honduras têm um nível “muito sério” no ranking. De acordo com o levantamento, as violações à liberdade de imprensa e informação assumem diferentes formas na região, com ataques perpetrados por diversos atores, como o próprio Estado, mas também outros grupos, como atores políticos, milícias, cartéis de drogas e, mais recentemente, pelo próprio público instigado por governantes e autoridades.
Ainda assim, a judicialização – abuso de mecanismos judiciais para censurar e intimidar pessoas que revelam informações de interesse público, seja para seu trabalho jornalístico e/ou para defesa de direitos humanos – tornou-se uma prática mundial. E isso faz parte de um movimento maior de judicialização da política. Segundo estudiosos da área, a judicialização da política está relacionada ao uso dos tribunais para anular e subjugar outras instituições ou ao uso dos métodos do processo judicial para julgar, corrigir e punir.
Os efeitos dessa tendência são sentidos cada vez mais no Brasil. Quem não se lembra do emblemático caso dos jornalistas da Gazeta do Povo que noticiaram os salários dos magistrados nos tribunais da região – informação de dados abertos, por acaso – e acabaram com processos em mais de 30 tribunais. No final, uma decisão do Supremo Tribunal Federal parou a loucura, mas não antes que os jornalistas e a organização de notícias fossem severamente prejudicados. Mais recentemente, a abertura do caso de investigação contra os médicos e os veículos de comunicação que denunciaram e revelaram o caso de uma criança que estava sendo impedida de acessar seu direito ao aborto legal também ficou conhecido. O pedido de investigação foi feito pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do atual governo.
Exemplos não faltam, mas os objetivos são sempre os mesmos. Quem entra com tais ações quer drenar recursos, prejudicar moral e psicologicamente e, acima de tudo, silenciar. Para se livrar da informação, melhor matar o mensageiro e a mensagem, que é mais barato do que outras formas disponíveis para contradizer. Aliás, como contradizer? Como eles poderiam contra-atacar já que a informação é pública, aberta e, mais importante, é verdade?
No fim, não importa quem ganhe o processo, o autor de tal ação já ganhou. Processos judiciais podem levar anos; e a informação é muito provavelmente proibida de circular, censurada e escondida do público. Esse tipo de estratégia também é conhecida como SLAPP – um “processo estratégico contra a participação pública”. O Reino Unido e outros países (Estados Unidos e Canadá, até onde se tem notícia) estão preparando ações e criando iniciativas para barrar a entrada ou descartar rapidamente processos nas cortes dos seus países que sejam reconhecidos como SLAPP. No caso do Reino Unido, o processo tem três passos: primeiro, a própria corte será capaz de avaliar se ação é contra uma atividade jornalística que é de interesse público; segundo, será avaliado se não há abuso do processo judicial por parte do requerente; e, por último, se a ação é viável e tem chance de sucesso.
Esse procedimento será testado em breve. Esperemos que os resultados sejam satisfatórios e sirvam como modelos para outros países e sistemas legais. Pois, o SLAPP está diretamente relacionado à ação de impedir que as pessoas conheçam, tenham acesso a informações que possam levá-las tomar decisões diferentes ou informadas, que é, afinal, a pedra angular das democracias. Então, por que autoridades, políticos e até governos em democracias ao redor do mundo estão usando essas estratégias em primeiro lugar?
Infelizmente, a resposta a esta pergunta é complexa e não muito definitiva, mas existe um caminho que pode fazer com que as coisas mudem ou, pelo menos, aliviem as situações dolorosas que os jornalistas e os órgãos de comunicação enfrentam, que é o conhecimento, a colaboração, a cooperação, a solidariedade, e políticas mais fortes para defender a imprensa livre.
Exemplos se espalham pela região. Diversas entidades se uniram para transformar ações em políticas públicas com entidades e governos. O Coletivo Voces del Sur (que congrega: Argentina, Bolívia, Equador, Honduras, Peru, Uruguai, Venezuela, Nicarágua, Guatemala e Brasil) apresenta essa estratégia. Voces del Sur reúne um grupo formado por 10 organizações da região que desde 2017 defendem a melhoria das condições dos profissionais de imprensa e a liberdade de expressão e de imprensa na América Latina. Uma de suas tarefas foi reunir todas as informações sobre violações de 12 indicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, que monitoram ações como restrição de acesso à informação, assassinatos, desaparecimentos, detenções arbitrárias, restrições à internet, ações judiciais e agressões e ataques.
No Brasil, a Abraji, em sua próxima conferência, abordará o tema com diversas palestras e também criou o Centro de Proteção Legal para Jornalistas. Artigo 19, Committee to Protect Journalists (CPJ), The Global Investigative Journalism Network (GIJN) e muitas outras organizações têm lutado para esclarecer essas e outras questões relacionadas à segurança dos jornalistas. No entanto, o problema persiste, então, novamente, vamos lutar juntos para encontrar soluções e ajudar os que estão sendo perseguidos e julgados por fazerem o seu trabalho.