Quem deve ser beneficiado, quem deve pagar, qual o tipo de conteúdo que deve ser remunerado, com qual base de dados e qual o papel do Estado. Estas são as cinco perguntas cruciais para o debate sobre a remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais, de acordo com estudo divulgado nesta quarta-feira pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Além dessas questões que, certamente comportam respostas divergentes, o estudo traz experiências de outros países nesta questão.
“Essas tensões precisam ser expostas e elaboradas, para evitar que os mais fortes acabem avançando perspectivas que não são verdadeiramente consensuais”, analisa Rafael Evangelista, conselheiro do CGI.br.
Durante a coletiva de lançamento do estudo, a coordenadora do CGI.br, Renata Mielli, contextualizou a importância da remuneração do conteúdo jornalístico por parte das plataformas, que recebem atualmente grande parte da verba publicitária que antes era destinada aos veículos jornalísticos.
Dessa forma, o debate nacional e internacional sobre o tema, segundo ela, busca descobrir “como fazer essas plataformas retornarem uma parte dos recursos para contribuir com a valorização e o financiamento do ecossistema jornalístico ao redor do mundo”.
Renata também lembrou que, apesar do debate estar polarizado sobre os modelos a serem seguidos, a necessidade da remuneração por parte das plataformas é um consenso estabelecido internacionalmente. “A questão de como remunerar o conteúdo jornalístico é um debate apenas de qual o melhor caminho. Mas há um consenso internacional de que é necessário que essa remuneração aconteça e que as grandes plataformas, que hoje concentram a publicidade e os recursos que antes subsidiavam o trabalho jornalístico, deem esse retorno para a produção jornalística local”, afirmou.
Explicamos, abaixo, em separado, os principais pontos que o estudo traz sobre cada controvérsia e como outros países e blocos, como a Austrália e União Europeia, estão lidando com o assunto.
As 5 principais controvérsias em torno da remuneração do jornalismo
1) Quem deve ser beneficiado?
As disputas giram em torno dos critérios que devem ser estabelecidos para determinar quem pode receber a remuneração. Isso porque, a tendência das propostas é estabelecer o número de funcionários e o faturamento dos veículos midiáticos como parâmetros mínimos.
Esses pontos, segundo o relatório, são bastante criticados por deixar de lado pessoas físicas ou pequenos negócios que são nativos digitais e que podem ser bastante auxiliados pela verba das plataformas. Por outro lado, a ausência de critérios profissionais pode abrir brechas para atores da indústria da desinformação.
Há também os defensores da criação de um fundo público, que afirmam que este permitiria não apenas financiar atores específicos, mas também lançar projetos que apoiem o desenvolvimento e a sustentabilidade do jornalismo como um todo.
2) Quem deve pagar?
A escolha de um termo padrão também não é consenso. Enquanto a Austrália diz que os responsáveis pela remuneração são “plataformas digitais”, a União Europeia usa “prestadores de serviços de compartilhamento de conteúdos online” e o Canadá “empresas intermediadoras de notícias digitais”.
No Brasil, o texto do PL 2630 opta por nomear “provedores de redes sociais, ferramentas de buscas e serviços de mensageria instantânea”. Além disso, o estudo aponta que o Google e o Facebook foram as empresas focadas nos modelos internacionais de remuneração, como Austrália e União Europeia.
3) Pagar pelo quê?
Se há controvérsias em relação a quem deve ser beneficiado, a definição dos tipos de conteúdos jornalísticos também varia. O estudo do CGI.br levanta a amplitude do conceito de notícia, com o desafio, por exemplo, de abranger outros tipos de conteúdo, como temas relacionados a esportes e entretenimento.
“Há preocupação de que o uso de critérios quantitativos, como a quantidade de publicações e número de acessos, sirva como incentivo para a diminuição da qualidade do conteúdo produzido”, afirma o documento.
4) Com base em quais dados?
O quarto ponto indica a demanda por mais transparência por parte das plataformas em relação ao faturamento de publicidade digital ou aos algoritmos utilizados nos sistemas de recomendação de conteúdo. O relatório lembra que as empresas de tecnologia lançam o argumento de segredo de negócios para não compartilhar dados sigilosos. Mas, essa “guerra de números que não podem ser corroborados por uma auditoria independente ou por um órgão regulador torna muito difícil o processo de tomada de decisão sobre o tema da remuneração do jornalismo”, conclui o estudo.
5) Qual deve ser o papel do Estado?
Por fim, a última controvérsia trazida pelo relatório diz respeito a até que ponto o Estado deve interferir nas relações entre os produtores de conteúdo jornalístico e as plataformas. Isso porque modelos diferentes giram em torno dessa atuação estatal. A Austrália, por exemplo, optou por uma participação mínima do Estado, deixando a negociação ser feita diretamente entre plataformas e veículos de comunicação.
“Não há, no entanto, consenso sobre se esse é o melhor modelo, considerando, inclusive, as especificidades do contexto brasileiro, em que a livre negociação entre as partes pode ter como resultado uma concentração ainda maior de recursos e de poder em um número pequeno de atores”, pontua o estudo.
Em contraposição está a ideia de um fundo setorial público financiado por plataformas digitais, partindo de uma visão mais pró-ativa e ampla do papel do Estado. Esse ponto é defendido pela Associação de Jornalismo Digital (AJOR), a Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) e outras organizações da sociedade civil.
Como estão funcionando as experiências internacionais?
De acordo com o estudo do CGI.br, seis países ou blocos econômicos já possuem ou avançam em uma regulação sobre remuneração de conteúdos jornalísticos. Enquanto a Austrália e a União Europeia aprovaram nos últimos anos leis que se tornaram referência sobre o tema, Estados Unidos e Canadá ainda discutem os caminhos que irão seguir. Reino Unido e Índia começam as discussões.
Na Austrália, o Código de Negociação da Mídia, que entrou em vigor em março de 2021, determinou que plataformas como Google e Facebook negociem diretamente com as empresas de mídia no país. Em novembro de 2022, o governo divulgou um balanço do primeiro ano do marco legislativo, indicando que até então 36 acordos já tinham sido feitos. Apesar disso, críticos apontam que a iniciativa regulatória deixa de fora pequenos negócios e produtores de conteúdo, justamente por estabelecer critérios pautados em renda e audiência.
Na União Europeia, a diretiva MUD 2019/790 trata da remuneração do jornalismo a partir do debate sobre direitos autorais e tem o objetivo de proteger judicialmente as publicações de imprensa no que diz respeito ao seu uso por “prestadores de serviços da sociedade da informação”. A lei, que vinha sendo debatida desde 2016, determina que haja, em acordo, necessidade de autorização para o uso dos conteúdos. Apesar de ter sido aprovada em 2019, ela ainda está em processo de aplicação no bloco econômico.
Além disso, a Lei de Serviços Digitais e a Lei dos Mercados Digitais (DSA e DMA, respectivamente, em inglês), ambas aprovadas em 2022, propõem obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais que forem designadas como “gatekeepers”. Com a fase de aplicação ainda em processo, ainda não é possível medir os resultados das duas leis.
Canadá e Estados Unidos já desenvolvem sua própria lei
Nos Estados Unidos, corre nas casas legislativas o projeto da Lei de Competição e Preservação do Jornalismo, inspirado no modelo australiano. Por lá, como aponta o relatório do CGI.br, há disputas contra e a favor do texto. De um lado, organizações de jornalismo apoiam o texto e, de outro, as plataformas e algumas organizações da sociedade civil criticam os pontos levantados.
Já no Canadá, o Senado apresentou em dezembro de 2022 o projeto de lei de Notícias Online, que também incorpora pontos aperfeiçoados da lei australiana e cujo foco é regulamentar a divulgação digital de notícias e aumentar a equidade no mercado editorial digital canadense. É previsto que os acordos devam cumprir diversos critérios, como diversidade local e regional, garantindo, inclusive, espaço e investimento para mídias e produtores de jornalismo indígena. Também está previsto que um órgão responsável compartilhe publicamente o valor e os detalhes dos acordos entre os veículos e as plataformas.
O pesquisador e professor canadense Taylor Owen participou no início deste mês do festival 3i de jornalismo, que aconteceu no Rio de Janeiro, e explicou que, no país, os acordos podem ser individuais ou coletivos. Ele também lembrou a campanha contra o projeto encabeçada pelas próprias plataformas, que, preocupadas com a possibilidade de mais países replicarem a regulação, estimularam desinformação e também ameaçaram cortar serviços no território canadense. Ele sugeriu que o melhor modelo para remuneração do jornalismo pelas plataformas digitais deve seguir o princípio da transparência e solidez. No Canadá, a proposta já passou pela Câmara e deve ser votada em junho no Senado.
Sobre o mapeamento de legislações internacionais, Rafael Evangelista comenta que é importante o Brasil considerar as complexidades do tema, levando em consideração as especificidades locais. “Olhar para a legislação do exterior não significa que a gente vai copiar algo, mas é importante para usarmos e pensarmos o nosso contexto, um contexto de concentração das comunicações, com deserto de notícias, um país com profunda desigualdade, com histórico de propriedade cruzada nos meios de comunicação e que agora também é um dos países campeões em desinformação”, destacou o profissional.
O estudo “Remuneração do Jornalismo pelas Plataformas Digitais” pode ser lido na íntegra aqui: