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mar 14, 2022 | pontos de vista

Há um ano, Austrália obrigava Facebook e Google a pagarem por conteúdo noticioso. O que o Brasil pode aprender com esse modelo?

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No dia 25 de fevereiro, o código de negociação de mídia da Austrália fez um ano. Essa é a primeira regulação a obrigar Meta e Alphabet, donas de Facebook e Google, respectivamente, a pagarem por acordos individuais ou coletivos pelo uso de conteúdo noticioso em suas plataformas e serviços. A premissa da lei é simples, caso não haja um acordo entre as empresas de tecnologia e os veículos de mídia, um painel independente arbitra entre uma proposta de cada parte. Esse modelo não foi necessário, já que os acordos foram fechados entre as partes. As plataformas também devem fornecer transparência e alertar organizações de mídia aproximadamente um mês antes de qualquer mudança nos algoritmos. 

A lei não é perfeita, mas abriu caminho para a regulação das big techs, como são conhecidas essas empresas de tecnologia. Alguns países iniciaram (até antes da Austrália) algumas abordagens regulatórias definindo a responsabilidade das plataformas pelo conteúdo, como a lei de moderação de conteúdo da Alemanha que impõe penalidades financeiras pela não remoção de conteúdo caracterizado como discurso de ódio. Apesar de existirem, essas regulações são difíceis de implementar, já que foram desenhadas em um modelo tradicional de mídia que não é o mesmo praticado nas mídias digitais. 

O modelo australiano foi útil para o ecossistema do país já que garantiu outras formas de financiar o jornalismo de interesse público, em um sistema com alta concentração de mídia. A Austrália trata Facebook e Google como empresas com excessivo poder de mercado, ou seja, um oligopólio que ameaça o ecossistema noticioso do país. O cenário parece estar mudando já que vários países deram sinais que vão seguir a mesma direção. O Canadá já sinalizou que esta é uma política prioritária e criará um modelo de pagamento de notícias de forma semelhante ao da Austrália. Um consórcio de veículos franceses reclamou à Autoridade de Concorrência francesa (Autorité de la Concurrence, em francês) que forçou o Google a negociar com eles.

Até recentemente, as big techs desfrutavam de grande imunidade global. A Seção 230 do Ato de Decência de Comunicação permite a autorregulação dessas plataformas, ou seja, elas não têm responsabilidade por qualquer conteúdo que os usuários postem online, nem os danos causados por ele. Em termos de moderação de conteúdo, essa definição legal permite que as empresas escolham o quanto de responsabilidade querem assumir e intervenham apenas quando veem necessidade (como em casos de grande alcance midiático, como foi o Cambridge Analytica, por exemplo). Assim, muitas das mudanças nos últimos anos ocorreram devido ao clamor público, como a criação do Oversight Board do Facebook, a inclusão de avisos em conteúdos desinformativos e a remoção de usuários (deplataformização). Assim, sem regulação, grande parte destas mudanças foram fragmentadas e reativas.

Primeira reação é alegar insegurança

Há um ano, quando o código australiano foi proposto, a resposta pública do Google e do Facebook foi “apresentar” os riscos que o então projeto de lei trazia para o público. Na época, o Google promoveu campanhas, inclusive com um vídeo com  a diretora administrativa do Google Austrália, Melanie Silva, sugerindo que a lei “quebraria” seu modelo de negócios, assim como suas ferramentas. Também foram criados pop-ups que apareceriam no buscador para explicar sobre os “efeitos” da legislação na plataforma. Mesmo alegando que o conteúdo jornalístico respondia a uma menor parte da plataforma, Facebook tomou uma atitude mais extrema e baniu todo conteúdo jornalístico para dar um “gostinho” do que a lei causaria. A atitude causou repúdio dos usuários à plataforma. 

Momento equivalente presenciamos aqui no Brasil com o Projeto de Lei 2630/2020, também conhecido como o PL das Fake News, que pretende regular essas empresas em relação a moderação de conteúdo, mas também propõe que elas paguem pelas notícias que estão circulando nessas plataformas. Diferente da Austrália, o PL não explica como funcionaria a remuneração de veículos de imprensa e quais seriam elegíveis a receber pelo conteúdo. Na Austrália, existem fortes reclamações de que o código de negociação beneficia apenas os grandes grupos, um grande problema para o país que tem um dos mais concentrados mercados de mídia. Essas empresas defendem que o PL brasileiro deixa tão aberto o conceito de veículos de imprensa que pode acabar beneficiando sites que espalham fake news, como Revista Oeste e Jornal da Cidade, o que iria na contramão da proposta.

As empresas, assim como fizeram na Austrália, estão tentando formar um lobby com políticos e outras organizações para convencer dos “riscos” que o PL pode trazer para o país. Em entrevista para a série #Panorama2022, Laura Moraes, da Avaaz relatou a força que essas empresas têm para fazer lobby com políticos em comparação a agentes da sociedade civil. Em resposta, os veículos de mídia australianos se dedicaram a fazer um lobby defendendo o então projeto de lei. O que, até o momento, não foi visto no Brasil.  

Facebook e Google pediram boicote à lei e, junto com Twitter e Mercado Livre, publicaram uma carta defendendo que a proposta trata pouco do combate à desinformação e é uma “potencial ameaça para a internet livre, democrática e aberta”. A carta também alega que a lei poderá impactar pequenos empresários que vendem seus produtos ou serviços com anúncios online. Segundo as empresas, um dos artigos do texto impede o uso de dados pessoais para fins publicitários, mesmo que a coleta e utilização sejam feitas em conformidade com a LGPD. O Google também inclui avisos em seus produtos sobre o PL 2630/2020, conforme imagem abaixo. Essa forma de apelo foi a mesma utilizada na Austrália, tentando criar um clamor popular para que o PL não fosse aprovado. Na Austrália, não funcionou. Será que irá funcionar no Brasil? 

 

Reprodução/Liz Nóbrega

 

Apesar de ser um avanço, o código de negociação da mídia australiano também é criticado. O dinheiro pago por essas plataformas não é garantia de jornalismo de interesse público, já que não existem mecanismos para garantir isso. Durante a pandemia, o deserto de notícias australiano aumentou, mesmo com uma crise sanitária de menores proporções. Isso aponta que a negociação pode ter sido mais lucrativa para os grandes veículos do país do que para os pequenos. Além disso, como mencionado em um estudo publicado recentemente, o dinheiro vindo das plataformas pode criar mais uma forma de dependência do que solução para o problema do modelo de negócios das empresas de mídia. Talvez, como defende Diana Bossio e colegas, a transparência algorítmica tenha sido o ponto positivo da lei.  

 

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Mathias Felipe

Jornalista do *desinformante, cientista da computação e pesquisador, trabalhou para organizações do Brasil e do exterior. Interessado nas mudanças da prática jornalística, em particular dados e novas tecnologias.

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