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mar 6, 2023 | Pontos de Vista

Faz sentido separar os mundos on e offline?

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Nos anos 2000, era comum encontrar em casas brasileiras de classe média o hack de computador. Feito geralmente de madeira compensada, o móvel continha diversos nichos para receber as partes de uma máquina de mesa, além de gavetas para guardar CD-Roms, disquetes e cabos inutilizados. Para muitos, todo aquele aparato representava o espaço doméstico em que se “entrava” no mundo digital.

De lá pra cá, o computador diminuiu de tamanho e os eletrônicos viraram “inteligentes”. Até uma lâmpada pode ser conectada à Internet. Passamos a estar online também nas ruas e o lugar onde o “real” acontecia foi invadido por smartphones e por redes móveis cada vez mais potentes.

Hoje, o hack virou cafona. Foi substituído por escrivaninhas e mesas mais “minimalistas”. Ao mesmo tempo, a nossa capacidade de conexão se expandiu e nos fez questionar, inclusive, a ideia tradicional de lugar, já que é possível habitar essas redes em qualquer ambiente que se tenha sinal.

Nesse contexto contemporâneo, uma das perguntas que ficam é: ainda faz sentido separar os mundos on e offline?

Dez anos atrás, Ronaldo Lemos já previa um contexto futuro de alta conectividade em que a Internet, amplamente disseminada, iria se misturar com o mundo físico, fazendo com que a rede estivesse em todos os lugares. 

“Você estará cercado por telas sensíveis ao toque, à voz, à sua movimentação e o mundo inteiro será um grande aparelho de interação”, disse o especialista. Nesse cenário, segundo ele, a desconexão se tornaria rara a ponto de virar um verdadeiro luxo. Algo soa familiar?

Para o filósofo da informação, Luciano Floridi, isso já acontece com muitas pessoas nos últimos anos. De acordo com o italiano, o uso amplo e generalizado de diversas tecnologias digitais estão borrando, cada vez mais, as fronteiras dos mundos on e offline de forma a criar uma nova realidade, chamada por ele de “Onlife“.

O mundo “onlife”, então, é alimentado tanto pelo o que acontece no âmbito do material como no digital, criando uma espécie de “sociedade dos manguezais”, nutrida pelo rio e pelo mar ao mesmo tempo.

A premissa da mistura de mundos on e off também é levantada pelas principais iniciativas internacionais de regulação das plataformas digitais. A Lei de Serviços Digitais da União Europeia (o DSA, na sigla em inglês), recém aprovada e colocada em prática, busca construir um ambiente online seguro a partir das “normas off-line” dos Estados do bloco econômico.

Isso se reflete, principalmente, no objetivo específico de combater os “conteúdos ilegais” considerados pelo DSA como aqueles que não estão “em conformidade com o direito da União ou com o direito de qualquer um dos Estados-Membros”. 

Ora, se os crimes valem para o mundo offline, por que não valeriam no contexto conectado? Mais que isso, crimes online, mesmo que sejam aparentemente abstratos, também têm efeitos no mundo concreto, podem impactar e tirar vidas reais.

“Violência online é violência no mundo real”, bem aponta Maria Ressa, ganhadora do Nobel da Paz, no recém publicado livro “Como enfrentar um ditador”. A prova disso pode ser lida nos relatos levantados pela série “Atingidas pela desinformação” produzida ano passado pelo *desinformante em parceria com o Instituto Vladimir Herzog.

Ao que parece, caminhamos para um entendimento em consenso de um mundo híbrido altamente conectado, em que as barreiras do on e offline estão cada vez mais sutis e em interdependência. 

Nesse contexto, tanto a ideia de “mundo digital” separado da realidade como a percepção da “Internet é terra de ninguém” estão se tornando coisa do passado, como o hack de computador.

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Matheus Soares

Jornalista, pesquisador e mestre em Ciências da Comunicação (ECA/USP). Tem interesse nas transformações advindas das tecnologias digitais nos processos de comunicação e de participação cívica.

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