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acervo pessoal

dez 28, 2022 | Destaques, Notícias, Panorama2023

Com ou sem PL 2630, debate da regulação é urgente

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#Panorama2023

Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema.

A atuação da Justiça Eleitoral nas eleições foi uma das grandes polêmicas de 2022. Para a advogada Samara Castro, presidente da Comissão de Liberdade de Expressão no Mundo Digital da OAB-RJ, o movimento foi uma espécie de autodefesa em prol da ordem democrática, diante da inação de agentes como o Ministério Público Eleitoral e da ausência de uma legislação já consolidada sobre combate à desinformação.

Em entrevista para o #panorama2023, Castro indica a necessidade de uma regulação efetiva e que dê instrumentos jurídicos para esse combate. Para a advogada, o assunto é complexo e precisa de um amplo debate legislativo, com inspirações em legislações internacionais que estão em vigor, mas com um olhar detalhado para a realidade brasileira e suas especificidades.

Rodolfo Vianna: Samara, vamos começar falando das eleições passadas, essas que se encerraram agora. Na sua visão, como você faz um balanço das ações do Judiciário no combate à desinformação e fake news nesse processo? 

Samara Castro: Na prática, nós temos um arcabouço construído especificamente para o combate à desinformação muito limitado. Dentro dessas limitações, onde isso está mais sofisticado ou onde a gente conseguiu incluir algumas coisas pelas próprias características de agilidade, de criação de resolução, foi justamente na Legislação Eleitoral e com as responsabilidades para a Justiça Eleitoral e para as próprias campanhas. 

Tivemos uma eleição extremamente polarizada, muito radicalizada e com muitos problemas, o que já era esperado. Estamos falando sobre isso desde 2018, até um pouco antes, e mesmo assim não tínhamos respostas à altura do ponto de vista da legislação. Eu vejo que houve uma atuação muito proativa do Judiciário, que vinha não só das decisões judiciais, do próprio STF, mas especialmente do TSE, que tinha se preparado desde o começo com mecanismos administrativos para lidar com isso, criando uma Assessoria Especial de Desinformação e destinando ali uma boa parte das horas de seus servidores para a formação sobre desinformação. Foram várias iniciativas, vários cursos, capacitações, iniciativas de relação com a sociedade civil organizada, com a academia, inclusive do ponto de vista internacional, e também com as próprias plataformas e aqueles que estavam mediando o espaço da esfera pública digital. E dentro disso, mesmo com todos esses esforços, o desafio foi gigante. 

A gente teve um Judiciário proativo também no que diz respeito às decisões judiciais, não à toa a gente teve essa excepcionalidade muito necessária, que foi a Resolução 23.714. Essa resolução, que veio no finalzinho do segundo turno, vem também para amarrar tudo aquilo que ainda estava em aberto, da forma de julgar e dar um certo nível de padronização e segurança jurídica de como o Tribunal atuaria. Então eu vejo que, dentro da complexidade da situação, foi uma atuação muito necessária, uma atuação muito importante para garantir a integridade democrática, mais do que só a integridade eleitoral, e eu acho que isso era o que a gente precisava. 

Rodolfo Vianna: Pelo que você disse, fica claro que precisa agora de um marco regulatório, não? Porque as resoluções do TSE entraram justamente num vazio, digamos assim, de jurisprudência em relação ao tema?

Samara Castro: Sim. E não foi por falta de tentativa. É bom a gente lembrar que nós tivemos um árduo debate dentro do PL 2630, que foi inclusive apelidado de PL das Fake News, mas ele tentava trazer alguns parâmetros de responsabilidade na internet. A gente teve essa discussão também fortemente no Código Eleitoral, com a perspectiva, inclusive, que esse código pudesse ser aprovado a tempo de ser utilizado nas eleições. O que não aconteceu, e que deixou ainda mais frágil, porque a gente tinha uma legislação extremamente desatualizada e no meio do caminho, aquele interregno. Porque não tinha tido as minirreformas, que davam ali uma consertada, mas também não tinha tido uma aprovação de uma legislação mais completa, então a gente usou um pouquinho de cada. Isso é sempre muito prejudicial. Além das diversas tentativas de projetos de lei, dos mais absurdos aos um pouco mais coerentes. Então, não foi por falta de esforço, mas é óbvio que é um assunto complexo, demanda uma discussão que talvez nenhum desses projetos de lei, com exceção do PL 2630, a gente teve e ainda assim foi insuficiente e fez com que a gente estivesse muito descoberto. E como você resolve quando você está descoberto? Você parte para dois espaços: ou para o principiológico, buscando quais são os valores que você defende, quais são os direitos, quais são os bens jurídicos tutelados, para falar em uma linguagem jurídica, mas quais são os bens jurídicos tutelados e quais são as ferramentas que têm de defesa desses bens jurídicos, e você tentar adequar aquilo, ou equiparar aquilo para que seja possível algum tipo de atuação jurisdicional. 

Rodolfo Vianna: O próprio ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE e ministro do STF, ganhou um protagonismo muito grande nessas eleições. Inclusive, foi eleito como inimigo por boa parte dos eleitores do Bolsonaro. Ele também já se adiantou e disse dessa necessidade de um projeto de regulamentação das plataformas, inclusive numa reunião já com o presidente eleito Lula sinalizou essa necessidade. Ele disse mais de uma vez, em mais de uma oportunidade, que é necessário equiparar para as plataformas digitais, que hoje são classificadas como empresas de tecnologia, com empresas de comunicação, inclusive com as consequentes responsabilidades que isso implicaria. Na sua visão, você acha que é um caminho interessante esse tipo de equiparação? Ou a regulamentação não passaria por aí? 

Samara Castro: É o caminho necessário. Como é complexo isso, né? Porque a equiparação é uma necessidade quando você não tem tempo suficiente para criar uma normativa especializada naquilo. Eu sempre fui defensora da equiparação, eu acho que sim, para fins da legislação eleitoral, para como está colocado hoje, a equiparação para mim era quase que um fato consumado, por um lado ou para outro, ou porque a jurisprudência ia consolidar aquilo ou porque você ia acabar trazendo uma legislação que ao fim e ao cabo equipararia. Mas o que é inviável de seguir acontecendo é ter um abuso, uma desordem informacional que afeta o processo eleitoral, e essa conduta abusiva, lesiva, não ser enquadrada em lugar nenhum. Já existia o enquadramento pelo abuso dos meios de comunicação, que é o uso indevido dos meios de comunicação, que gera inelegibilidade, gera cassação. Meio de comunicação é um conceito amplo que não tinha sido, obviamente, utilizado lá atrás, quando se pensou, porque a gente não tinha internet. Mas a Justiça Eleitoral tem esse papel híbrido de poder dar compreensão, entendimento, até com mais flexibilidade que outras justiças, justamente porque se entende que tem uma diferença entre o ambiente eleitoral que muda a cada ano e qualquer outro aspecto do Direito. A gente brinca que o Direito está sempre atrás, mas no caso das eleições ele tenta ficar um pouco menos atrás, eu acho que é um pouco esse o espírito. 

Rodolfo Vianna: Nesse sentido, o TSE teve uma ação que pode ser classificada como positiva dentro dessa necessidade do que a gente acompanhou, do contexto desinformacional? 

Samara Castro: Com certeza. 

Rodolfo Vianna: O debate sobre a necessidade de regulamentação cresceu e ganhou importância. Você indicaria alguns caminhos pertinentes, algumas iniciativas internacionais sobre regulamentação que podem ser tomadas como exemplos ou que podem indicar um caminho aqui para a gente seguir nesse debate no Brasil? 

Samara Castro: Eu acho que é impossível a gente ter um parâmetro internacional que se adeque exatamente à realidade do Brasil, pela forma como o Brasil utiliza o ambiente digital, pela forma como as eleições brasileiras se dão, que são muito distintas da maioria dos outros países, e pelos nossos desafios. Mas eu acho que é impossível a gente olhar para qualquer aspecto regulatório sem analisar o DSA que foi feito na Europa, sem analisar o Online Safety Bill do Reino Unido, sem analisar o que foi feito no Canadá com o Elections Modernization Act. Então, sem a gente olhar para esses aspectos, não tem como. 

A própria União Europeia soltou alguns documentos pelo seu conselho falando sobre desinformação, então para além da parte mais normativa também tem algumas contribuições interessantes. A gente tem que olhar um pouco para o que todos os países estão fazendo e também para aquilo que deu errado. É importante olhar um pouco o que a Índia tentou fazer, e conseguir elaborar, a partir das experiências internacionais, o que para nós seria o adequado. Acho que a gente tem condições de construir isso, mas não é algo que a gente tem como ter soluções prontas. Eu até acrescento um ponto: eu acho que essas eleições consolidaram um pouco uma atualização, uma sofisticação, no que a gente vinha vivendo com a desinformação. Tem um aspecto de radicalização que precisa ser olhado com muito cuidado, porque os processos de desradicalização são extremamente complexos. E nós estamos com um Brasil em que a gente não fechou o nosso ciclo de lidar com a desinformação e já temos que lidar também com a radicalização, que não é algo para a gente fazer piada, rir – ainda que tenha hora que é inevitável -, mas é algo para a gente realmente entender o problema, a gravidade, e conseguir pensar essas soluções. 

Rodolfo Vianna: Dentro desse contexto de radicalização também a gente percebe que a polarização dos discursos ou das narrativas também se coloca entre censura e liberdade de expressão. Sobre as ações que o Judiciário realiza no combate à desinformação, qual é o limite para não ser censura de fato e garantir a liberdade de expressão? 

Samara Castro: É importante a gente dizer que do ponto de vista do Judiciário, nós tivemos dois aspectos de combate à desinformação nas eleições. Um é aquele combate à desinformação entre as campanhas que se deu nos parâmetros daquilo que as campanhas entravam com uma ação e cada uma apresentava seus elementos. Foi um parâmetro bem equilibrado de avaliação das situações. E outro é um problema que talvez ataque a nossa integridade democrática, que é o questionamento da integridade eleitoral, da validade das urnas, o ataque aos ministros, o ataque ao próprio Tribunal. 

Todo mundo se preocupou muito com esses ataques lá atrás, mas imaginou que a defesa que seria feita do Tribunal e da integridade como um todo seria muito diferente. Essa defesa tem um agente específico para ela, que é o Ministério Público Eleitoral. Quando o Ministério Público Eleitoral se exime dessa responsabilidade, você não tem quem defenda a integridade. Então eu entendo o movimento da Justiça Eleitoral como um movimento quase que de autodefesa, o que conecta de forma muito interessante com uma teoria, que é a teoria da Democracia Militante, que é justamente essa questão de se você, num espaço democrático, não defende a democracia contra elementos que, dentro daquilo que a democracia permitiria, são elementos corretos, mas estão questionando o próprio regime democrático, então ela está ameaçada. Então eu acho que essa discussão está dentro desse parâmetro: aquilo que questiona o próprio regime, aquilo que questiona a nossa integridade, mesmo que esteja fazendo uso dos aspectos de organização social presentes e permitidos pela liberdade de expressão, pela própria organização de manifestação, de livre manifestação e posicionamento, esses elementos só estão passíveis dentro de uma democracia enquanto eles são democráticos. A partir do momento que eles não são, eles devem ser olhados com outros olhos. Eu acho que talvez este seja o critério. 

É muito fácil falar quando a gente não está dizendo sobre um caso concreto, no caso concreto é muito mais complexo você medir esses valores, porque muitas vezes esse limiar vai estar muito próximo entre o que é a censura prévia e aquilo que é a defesa da própria democracia e daquilo que a gente vive hoje. Eu acho que esse equilíbrio tem um espaço para ser feito, esse espaço é o Judiciário. A gente está no espaço certo, tomando as medidas certas? Eu acho que na ampla maioria das vezes sim, 100% não, nada é 100%, mas eu acho que nós estamos tentando fazer um esforço muito válido, muito necessário, primordial, e que desagrada sempre. E se todo mundo está desagradado um pouco é porque talvez a gente esteja no caminho certo. 

Rodolfo Vianna: O ministro Ayres Britto, em evento em Nova York, usou esse termo, dizendo que a democracia tem seus militantes, fazendo referência a esse conceito, e ele mesmo se colocou como escudeiro do Alexandre de Moraes por entender essa necessidade de uma autopreservação. Você acredita que é um caminho necessário para a preservação da democracia? 

Samara Castro: Eu acredito, tenho feito essa defesa há bastante tempo. Inclusive na própria polêmica da resolução, saí em defesa dela porque eu entendia que era uma medida necessária. E é uma medida que vem nesse aspecto de falta de ocupação do espaço, que era o espaço do Ministério Público, que é esse de inação total e completa. Essa inação, eu acho que é causa e consequência, ela também motiva e ela quase que exige que o Tribunal saia em autodefesa, porque como você vai pedir que as campanhas entrem com ações para preservar a integridade se elas estão preocupadas em preservar suas próprias campanhas? Porque esse é o papel delas: batalhar ali dentro das suas próprias campanhas. O que seria inclusive até esquisito talvez, se a campanha que fosse sair em defesa do Tribunal. Então quem defende as causas coletivas? É o Ministério Público. 

Isso nos coloca vários desafios e várias lições, de como a gente vai controlar, estimular a ação de um dos órgãos tão importantes para nós, mas que também, pela sua própria forma de indicação e pelo próprio mecanismo que se criou no Brasil, se tornou essa coisa institucional meio esquisita, ficou um pouco refém do que poderia ser feito na campanha. 

Rodolfo Vianna: Samara, para encerrar, uma pergunta também muito difícil, mas importante. Pergunta não, uma opinião: você se considera otimista com o futuro? Você acha que a gente pode caminhar para solucionar problemas que a gente está vendo nos últimos tempos e que a regulamentação pode ser um caminho positivo? Há um otimismo pairando no horizonte ou não? 

Samara Castro: Eu falo que eu sou otimista da vontade e pessimista da razão. Eu estou nesse rol de pessoas que têm otimismo pela vontade, porque eu acho que tem muita gente boa trabalhando nesses temas, inclusive o *desinformante, tem muita gente capacitada que só precisa de espaço para poder encarar esse desafio e eu acho que esse governo vai ter espaço, até porque é uma questão de sobrevivência. Ou a gente faz isso, fazendo inclusive uma correlação com a questão da gente salvar o meio ambiente, que tem sido uma pauta muito forte, a gente também tem que salvar o ambiente democrático nessas questões que envolvam eleições, que envolvam as questões de democracia mesmo. Então eu sou essa otimista da vontade. E pessimista da razão porque é um desafio enorme, mexe com interesses grandes, mexe com interesses cada vez mais capitalizados, cada vez mais mercadológicos, e que a gente sabe que todos esses grandes interesses são sempre vindos de grandes desafios de mudanças, de responsabilização. E tem também o desafio de entender que a gente mudou. Por um tempo muito importante o Marco Civil da Internet foi uma grande vitória para nós, mas que ele precisa ser atualizado, especialmente no que diz respeito à responsabilidade sobre conteúdo de terceiros das plataformas. Eu espero contar com os meus amigos dos direitos digitais, que foram tão importantes no Marco Civil da Internet, que sejam mais uma vez importantes nessa nossa discussão. 

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