Em 4 de novembro, um consultor político argentino que presta serviços de marketing digital e consultoria ao presidente Jair Bolsonaro apresentou em uma live os resultados de uma suposta “auditoria privada” das eleições de 2022 a fim de tentar colocar em xeque o resultado eleitoral e de desacreditar o sistema eletrônico de votação brasileiro. A Artigo 19 Brasil e América do Sul divulgou hoje uma nota técnica que explora a inconsistência dos argumentos apresentados pelos responsáveis pelo “estudo” e os equívocos da suposta análise.
“Considerando o trabalho da organização no tema das tecnologias do voto e da participação política, a ARTIGO 19 pretende contribuir com esse documento para o debate saudável sobre o sistema eleitoral e desmontar argumentações falaciosas feitas por campanhas de desinformação que buscam minar a legitimidade dos processos democráticos”, afirma a nota.
A “auditoria” não tem nenhum valor científico, segundo a organização, e “não passa de um bolo de dados falaciosos, envernizados com números e gráficos manipulados, com o objetivo de tentar conferir-lhe um manto de credibilidade e cientificidade, para minar a confiança nas instituições e intoxicar o debate público com desinformação”.
Abaixo, os principais pontos do documento. Com base nessa expertise e nas avaliações de Bruno Speck, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), e da estatista Gabriela Uhrigshardt, também da USP, ao menos seis graves defeitos na “auditoria” foram encontrados:
DEFEITO 1: Uso de premissa falsa
A incorreta conclusão da “auditoria” é que apenas as urnas do modelo 2020 (UE 2020) funcionaram corretamente e que os modelos anteriores apresentaram “anomalias”, com resultados que favoreceram um dos candidatos. Isso teria ocorrido, segundo a “auditoria”, porque somente o modelo UE 2020 teria sido auditado. Mas isso é FALSO. Todas as versões das urnas foram submetidas a diversas etapas de fiscalização e auditoria. Por exemplo, o teste de integridade, um dos procedimentos de segurança mais importantes, realizado no dia da eleição, é feito com urnas de todos os modelos. As urnas submetidas a essa avaliação são escolhidas pelas entidades fiscalizadoras, como as Forças Armadas, ou por sorteio.
A falsa premissa usada na “auditoria” distorceu a notícia de que o modelo 2020 foi testado por pesquisadores do Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (Larc) do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (PCS/USP) entre julho e agosto deste ano. Mas isso não quer dizer que os modelos anteriores não tenham sido testados e auditados em outras oportunidades. O trabalho feito pela USP ocorreu porque as unidades da UE 2020 foram entregues em dezembro de 2021, antes da realização do Teste Público de Segurança (TPS), feito em novembro, com os modelos anteriores. Por isso, o TSE decidiu que, para ratificar os procedimentos de segurança, a UE 2020 fosse avaliada pelos especialistas da USP.
Antes do TPS de 2021, pesquisadores do Larc já tinham avaliado a segurança do modelo 2015, inclusive propondo melhorias ao sistema por meio de relatórios internos ao convênio entre a USP e o TSE.
DEFEITO 2: Grave erro metodológico
A “auditoria” supostamente comparou 2 conjuntos de urnas, ambos referentes a cidades com menos de 100 mil eleitores. Em um conjunto foram colocadas cidades em que foi usado apenas o modelo UE 2020. No outro conjunto, municípios em que foram usadas apenas urnas dos demais modelos. Mas qualquer comparação entre esses dois grupos só faria sentido, em tese, se a distribuição dos modelos de urna eletrônica pelo território brasileiro fosse aleatória (o que não foi provado pela “auditoria”). Sem distribuição aleatória, as amostras tornam-se enviesadas, levando a resultados sem nenhum valor. Em outras palavras, sem aleatoriedade, é natural que ocorra uma relação entre o modelo de urna usado em uma zona eleitoral e o padrão de votação dessa mesma zona.
Em Pernambuco, por exemplo, a maior parte das urnas do modelo 2020 (pouco mais de um terço do total) foi distribuída, por questões operacionais, na região metropolitana de Recife. Na maioria dos estados ocorreu comportamento similar. Não foi uma distribuição aleatória. Ou seja, no interior do estado, a maior parte das zonas eleitorais usou os outros modelos de urna. Ao mesmo tempo, a vitória de Lula na região metropolitana ocorreu por uma margem relativamente mais apertada do que no interior do estado.
Nessas circunstâncias, é natural que a UE 2020, concentrada na capital do estado e arredores, tenha registrado uma vitória mais apertada de Lula, e que as urnas dos outros modelos, concentradas no interior, tenham registrado uma vitória mais folgada. Isso se explica por fatores socioeconômicos. Afirmar que existe uma relação de causa e efeito entre o modelo de urna e o resultado eleitoral é ignorância ou tentativa deliberada de criar desinformação.
DEFEITO 3: Recorte sem sentido usado pela “auditoria” (municípios com menos de 100 mil eleitores)
A suposta lógica por trás dessa escolha é justificada com o argumento de que são cidades do mesmo “tamanho”, com “populações homogêneas”, no mesmo estado e “idênticas” demográfica e socioeconomicamente. Ou seja, se essa afirmação fosse correta, a única explicação para comportamentos eleitorais diferentes em cidades com populações muito parecidas seria, segundo a “auditoria”, o modelo de urna eletrônica. Mas é INCORRETO afirmar que a única diferença entre esses dois grupos de cidades é o modelo de urna eletrônica usado em cada um. Isso porque o número de cidades consideradas é muito grande – o que significa que há bastante heterogeneidade entre elas.
Assim, outras variáveis influenciaram o comportamento dos eleitores. Portanto, não faz o menor sentido relacionar o modelo de urna ao comportamento eleitoral. Os resultados encontrados por meio desse recorte não têm nenhum valor, sendo cientificamente impossível extrair deles a interpretação feita pela “auditoria”. A “auditoria” intencionalmente usa um recorte injustificável e descabido para gerar artificialmente uma conclusão que já havia sido estabelecida previamente.
DEFEITO 4: Gráficos intencionalmente distorcidos
É nítido que os gráficos que integram a “auditoria” não têm escala. Por exemplo:
O gráfico da esquerda se refere às urnas UE 2020 (cujo comportamento, segundo a “auditoria”, foi normal). O da direita, aos demais modelos (que, segundo a “auditoria”, teriam beneficiado Lula). Repare como o gráfico da direita está intencionalmente “achatado” no eixo X (número de votos para Bolsonaro), levando à falsa impressão de que o presidente teve menos votos. Mas nos dois gráficos, na verdade, o número vai até a casa dos 200 votos.
A “auditoria” tentou demonstrar que os dois gráficos divergem, já que seriam visualmente diferentes, para induzir a conclusão de que no da direita, referente às urnas mais antigas, houve tendência de mais votos para Lula. Mas os dois gráficos são, na verdade, muito parecidos. Se a escala deles não tivesse sido intencionalmente distorcida, a diferença que os autores dizem existir não apareceria visualmente.
DEFEITO 5: Desinformação requentada
Foi requentado o falacioso argumento de que uma evidência de fraude seria o fato de que, em algumas urnas, Bolsonaro recebeu um número de votos significativamente menor do que o de candidatos apoiados por ele. Mas essa “incongruência” é um fenômeno conhecido há muito tempo, que ocorre em várias democracias e que é estudado em vários lugares do mundo. É no mínimo um erro interpretá-la como “suspeita” ou “indício de fraude”.
“O que está por trás disso é a maior ou menor capacidade de ‘transferir’ votos, seja pelo partido, seja por lideranças, de uma eleição para outra (federal para estadual, majoritária para proporcional)”, diz Bruno Speck, professor de Ciência Política na USP. Não é a Justiça Eleitoral ou as urnas que são responsáveis pelo mau desempenho do presidente, mas o capital político do suposto puxador de votos.
DEFEITO 6: Falta de conhecimento em estatística e Ciência Política
Outro ponto da “auditoria” que está sendo explorado por influenciadores inconformados com a derrota eleitoral é o fato de Bolsonaro não ter recebido nenhum voto em algumas urnas. Se for considerado que os dados usados na “auditoria” estão corretos e não foram adulterados – o que não está comprovado –, no segundo turno esse número seria de 143 urnas. Em termos estatísticos, é um número irrelevante. Representa cerca de 0,03% do total de seções eleitorais. É perfeitamente normal que, em algumas urnas, o fenômeno possa ocorrer.
“A urna é uma unidade muito pequena. Nessas unidades pequenas, é perfeitamente possível que haja muita homogeneidade no comportamento eleitoral”, explica Bruno Speck, professor de Ciência Política da USP. Ou seja, inversamente, quanto maior a amostragem, maior a probabilidade de que os números sejam mais próximos do resultado total. “Dentro do mar de quase meio milhão de urnas, não é estranho que algumas urnas tenham recebido zero voto em algum candidato”, conclui Speck. A análise pontual de cada urna seria outra forma de demonstrar a fragilidade do argumento desses conteúdos falaciosos.
Em uma seção eleitoral em Confresa (MT), por exemplo, Bolsonaro não recebeu nenhum voto. A explicação é simples: trata-se de uma comunidade indígena. É normal que em localidades assim um único candidato a cargo majoritário receba todos os votos. Aliás, surpreende menos ainda que, após declarações e políticas públicas relacionadas a indígenas, o atual presidente não seja bem avaliado por essa parcela da população.
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