Investimentos públicos em remédios sem eficácia, decisões do judiciário baseadas em fatos inverídicos, divulgação de notícias manipuladas em meio a uma guerra, perda do prestígio das instituições e perda da percepção da realidade. Estes e outros impactos das fake news nos custam tempo, dinheiro e, muitas vezes, vidas. Para além de ataques a candidatos e partidos, a circulação das notícias falsas impacta também na orientação de políticas públicas, acarretando prejuízos para o conjunto da sociedade. Em caso recente, a epidemia de Covid-19, por exemplo, foi acompanhada de uma epidemia de desinformação questionando a eficácia – ou mesmo função – das vacinas e a propagação de tratamentos sem eficácia cientificamente comprovada.
Com o objetivo de responder à pergunta “o que acontece quando as fake news saem das redes sociais e impactam as nossas vidas?”, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) lançaram uma cartilha com mapeamentos dessas influências, distinguindo quatro categorias de análise: impactos sobre atores do Estado; impactos sobre atores da Sociedade; impactos sobre a estrutura do Estado e impactos sobre a estrutura da Sociedade.
Foram agrupados 23 impactos das fake news e da desinformação sobre políticas públicas, a partir dos critérios e filtros utilizados na pesquisa. Separamos alguns setores que a pesquisa identifica:
Agentes do judiciário
Foram observadas decisões baseadas em desinformação; ou omissões diante de desinformação; ou ainda posições sustentadas por sistemas de crenças no contraponto do conhecimento científico). Como exemplo, em meio às ambiguidades na pandemia da Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) precisou emitir parecer para orientar juízes sobre quais decisões tomar.
Parlamentares
As influências das fake news nesse grupo se manifestam, por exemplo, “na construção de Projetos de Lei baseados em desinformação; omissões devido a influência de fake news e defesa de pautas anti-ciência por persuasão de notícias falsas”, cita a cartilha.
Outro agrupamento realizado pelo estudo foi aquele que promoveu uma “Alteração na percepção da realidade” por meio de, principalmente, teorias conspiratórias. Como exemplo selecionado, os pesquisadores trouxeram o do projeto de lei “Escola sem Homofobia”, vetado em 2011 e comumente denominado de “Kit Gay”. O Projeto estaria para ser implementado para efetivar ações que promovessem direitos da respeitabilidade e diversidade de gênero no âmbito escolar, “mas foi distorcido em meio às narrativas e desmoralizado”.
Orçamento público
Sobre o direcionamento do orçamento público, a cartilha relata que o Governo Federal “direcionou recursos públicos no intuito de incentivar o uso de medicamentos sem eficácia. Exemplo ao chamado ‘Kit Covid’ nomeado de ‘tratamento precoce’, o qual custou aos cofres públicos R$ 126,5 milhões, além do esforço de mobilizar a estrutura estatal com o lançamento do aplicativo ‘TrateCOV’ que prescrevia tais medicamentos”.
“Além da disputa nas redes, a desinformação e as fake news têm nos custado vidas. A ameaça à democracia não passa longe, enquanto narrativas encomendadas e operadas por profissionais ganham vantagem com bots”, explica Ergon Cugler, que coordenou a pesquisa. “Em contraponto à barbárie da distopia da desinformação e de um Brasil paralelo com a mentira pautando políticas públicas, surge o desafio de resgatar a realidade e fazer da verdade um compromisso comum daqueles que defendem a democracia”.
A cartilha completa, com todas as 23 categorias sistematizadas a partir de mais de 4 mil materiais selecionados ao longo de um ano, pode ser acessada aqui.
Desinformação pode estar relacionada à baixa adesão às vacinas
Para além da epidemia de Covid-19, o programa de vacinação brasileiro vem apresentando números preocupantes de redução de cobertura. Mais de dois meses após o início da campanha de vacinação contra a poliomielite, o país segue com a mais baixa cobertura de imunização da doença em mais de quatro décadas. A meta do Ministério da Saúde é vacinar 95% das crianças com menos de 5 anos, mas até agora só 65% delas já tomaram as doses.
Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo no dia 16 de outubro, o médico Luiz Paulo Rosa afirma que “é impossível não relacionar a diminuição da cobertura vacinal com a enxurrada de desinformação que ocorreu em meio a pandemia de Covid-19”. E prossegue: “as notícias falsas sobre possíveis efeitos colaterais da vacina funcionaram como um fator que afastou a população da procura por imunizantes. A impressão é que rompemos gradativamente um pacto civilizatório, responsável por livrar milhões de crianças da paralisia infantil, da malária, da varíola, da coqueluche e de diversas outras doenças.”
A Sociedade Brasileira de Imunização e o Instituto Questão de Ciência (IQC), preocupados com a relação entre desinformação e cobertura vacinal, realizaram ao final de julho um encontro com objetivos de debater o aspecto histórico, as causas e as consequências da hesitação vacinal, bem como buscar estratégias mais eficazes para combater a desinformação, já que “fake news relacionadas a vacinas estão entre os motivos da queda nas coberturas vacinais, que, apesar de acentuada na pandemia, começou em 2016”.
A presidente do IQC, Natalia Pasternak, afirmou que, apesar de ser um fenômeno recente no Brasil, a desconfiança sobre vacinas não é nova. Estados Unidos e França lutam contra o problema de forma intensa há muitos anos. Segundo a microbiologista, “é o momento de aprender com a experiência dos demais países, analisar o cenário nacional e entender como cada profissional de saúde pode colaborar”.