As plataformas digitais redefiniram o debate público, assim como redefiniram os fluxos sociais e o próprio funcionamento do trabalho. A lógica de métricas e engajamento proposto pelas mídias é capaz de amplificar discursos e transformar usuários em influenciadores digitais, além de angariar público e relevância na rede. Portanto, cada um luta por um espaço, uma curtida ou um clique, luta tanto que chega a pagar por isso. Todo esse mercado de influência, aliado a outros fatores socioeconômicos, alimenta fenômenos como as fazendas de cliques.
As fazendas de cliques remuneram o usuário por cada clique nas redes sociais e tudo isso gera camadas “invisíveis” de desinformação. A primeira delas é que aquela curtida, aquele view ou até aquele comentário não são genuínos e, sim, comprados. A segunda é que, muitas vezes, aquela conta que promove a ação também não é verdadeira, pode ser um fake criado (ou até vendido) exclusivamente para aquela ação. A terceira é que esses cliques podem ser contratados para amplificar algum discurso enganoso, ou até para diminuir outro discurso, como aponta o professor e pesquisador Rafael Grohmann:
“Até 2020 uma das empresas mais conhecidas pagava para quem topasse dar dislike em vídeos no YouTube, um indício da fazenda de clique incentivando a criação de redes de ódio”, destaca.
Trabalho digital e uberização
As fazendas de cliques não chegam a ser um conceito, mas um fenômeno “importado” do sudeste asiático, onde estão em expansão há mais tempo.
No entanto, as plataformas de microtrabalho, que desencadeiam as fazendas de cliques, não são novas. A própria Amazon possui uma plataforma, a Amazon Mechanical Turk, desde 2005, em que pessoas são remuneradas com centavos para fazerem pequenas tarefas que auxiliam no aperfeiçoamento da tecnologia.
A diferença é que, no contexto das fazendas de cliques, as microtarefas envolvem um trabalho direto nas mídias sociais, como seguir alguém ou curtir e comentar em determinados posts. Esse modelo de atuação se torna atraente num momento em que 11,9 milhões de brasileiros estão em busca de trabalho (IBGE) e não é necessário domínio de outras línguas ou outras habilidades específicas. “Isso radicaliza a informalidade do trabalho no Brasil”, destaca Grohmann.
O professor Ricardo Antunes, titular de sociologia do trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp criou o termo uberização para descrever o atual processo em que as relações de trabalho são individualizadas e invisibilizadas, assumindo a aparência de “prestação de serviços” e apagando as relações de assalariamento e exploração do trabalho.
Um caso emblemático desta disputa foi a criação recente do primeiro sindicato dos trabalhadores da Amazon, uma das empresas mais lucrativas do mundo e que era notória por oferecer condições opressivas de trabalho ininterrupto.
Trocamos robôs por robôs
Além desse contexto socioeconômico brasileiro e de outros países no sul global em que é frequente esse tipo de trabalho precarizado, outras questões preocupantes se somam a essa conjuntura. Uma delas é a própria política das plataformas, que busca coibir o uso de robôs e o comportamento inautêntico. Assim, as fazendas de cliques que funcionavam assim,
passaram a ser fazendas alimentadas pelo trabalho humano (que às vezes pode recorrer a bots) buscando fugir de banimentos promovidos pelas plataformas de redes sociais. No entanto, para cumprir as metas e expandir os lucros, cria-se um mercado paralelo de robôs e contas falsas feitas pelos trabalhadores.
Fazendas de cliques suprindo a dor de quem deseja a fama
As fazendas de cliques só existem porque alguém as financia. Nesse caso, quem financia esse mercado de curtidas e visualizações é justamente quem quer receber todo esse engajamento, mesmo que ele seja inautêntico. Tudo começa com a contratação desse serviço.
Uma das plataformas que atuam nesse mercado coloca na sua descrição que busca “suprir a dor de pessoas que desejam se tornar famosas”:
Essa contratação, de acordo com Rafael Grohmann, é feita principalmente por microinfluenciadores que buscam ganhar engajamento e por “pequenos estabelecimentos no interior do Brasil que querem bombar as vendas pelo Instagram”, explica.
As plataformas terceirizam esse trabalho anunciando as microtarefas para os usuários. Aquela tarefa específica é remunerada por menos de um centavo, mas as plataformas prometem bons ganhos no fim do mês, veja abaixo uma simulação proposta pela própria plataforma:
No entanto, esse ganho nem sempre é real, como aponta Grohmann a verdadeira cara deste serviço. Por exemplo, se o perfil foi bloqueado pelo Instagram ou outra plataforma de mídia social, o usuário não ganha aquele valor. Além disso, a simulação leva em conta o uso de cinco perfis, ou seja, não é apenas o perfil pessoal do funcionário que é utilizado, mas também fakes e até robôs (algo que é amplamente ensinado em canais de YouTube com milhares de visualizações).
Essa lógica abre, portanto, um novo mercado dentro das fazendas de cliques. O pesquisador explica o mecanismo: “Os trabalhadores cansados de ganhar pouco criam seus próprios fakes e bots, ou seja, o cliente compra seguidores reais, mas os seguidores reais também são terceirizados para bots”.
Existe todo um mercado de contas fakes comercializadas entre esses trabalhadores em grupos de WhatsApp. “Esse mercado paralelo envolve desde contas vazias, custando R$ 0,50, contas com 10 seguidores, até as contas que eles chamam de alto padrão por R$ 10,00. Também existe a venda de pacotes de fotos para alimentar o perfil fake. Cada trabalhador é instado a ser um possível revendedor de contas fakes, algumas que, dependendo da complexidade, chegam a custar R$ 700,00”.
Esse mercado da indústria digital, sem amparo legal, em que o combinado entre patrão e empregado é o que vale, ganha um verniz com a participação de subcelebridades, microinfluenciadores anunciando uma forma fácil e rápida de ganhar dinheiro na internet. Recentemente, a pesquisadora Issaaf Karhawi chamou a atenção para a propaganda de alguns ex-BBBs para plataformas que remuneram os usuários por cada view em determinado vídeo no YouTube:
Saiba mais sobre fazendas de cliques
O DigiLabour, laboratório de pesquisa da UniSinos, coordenador pelo professor Rafael Grohmann, fez um passo a passo de como funcionam essas fazendas de cliques:
Além disso, o grupo de pesquisa, buscando dar visibilidade à questão, criou um desenho animado retratando a vida de uma trabalhadora numa fazenda de cliques: