Total compaixão pelo pai que apagou duas cidades inteiras na França pra tirar seus filhos da frente do celular. É uma notícia que está circulando na rede hoje. O pai usou um bloqueador de sinal e acabou derrubando a conexão da sua cidade e do município vizinho. Vai ter de pagar uma taxa de 450 euros e enfrentar um processo judicial que pode resultar em até seis meses de prisão.
A gente acha graça, primeiro, pelo inusitado, mas depois de ler que a justificativa dada às autoridades francesas foi o desespero de ver os filhos viciados em redes sociais, principalmente depois dos confinamentos em razão da epidemia de Covid-19, a gente veste a carapuça e se não chegou a esse limite é por falta de conhecimento técnico. Lembro que conheci gente que desligava a energia da casa pros meninos saírem da televisão.
“Ao querer banir a internet em sua casa, ele aplicou a mesma sentença a toda a vizinhança”, disse a agência nacional francesa, em seu site.
Essa declaração oficial faz pensar, por outro lado, que se a decisão privada impactou o coletivo, quem nos protege de toda a invasão da nossa vida privada, dado que conhecemos pouco ou nada do modus operandi das redes sociais? Quem responde pelo impacto das plataformas de redes sociais em nossa vida mais íntima? E quando esperamos que as próprias empresas se regulem sabemos que as coisas não saem como esperado.
Isso sem contar que a pandemia acelerou as coisas de tal maneira que talvez só mesmo Dinamarca e Nova Zelândia – esses oásis de educação – estejam atentos e contemplem crianças menores em sua incursão precoce ao universo digital.
Uma colaboradora nossa contou que o filho de 10 anos está viciado em Tik Tok. Zero novidade, mas sua didática foi certeira: – se você só acessar Tik Tok vai continuar vendo Tik Tok na vida presencial, não vai enxergar nada diferente do que vê lá na rede social.
Ela também está lendo o livro “Facebook Democracy: The Architecture of Disclosure and the Threat to Public Life (Politics & International Relations)”, de José Marichal, que explica um pouco a mecânica do vício nas redes e a ilusão de que você gera engajamento e, portanto, deve continuar alimentando a engrenagem com sua vida e seu tempo.
Aqui não temos receita pronta. Um choque de gestão é dar cinco minutos pra colocar uma bermuda e camiseta e sair por aí no sol, praça, parque, encontro com amigues. Ok, às vezes a chantagem envolve um sorvete ou açaí.
Mas na lógica de resiliência – vamos envergar pra entender o fenômeno – me deparei, através do meu filho, com a série “Eu e o Universo”. Produzida pela Netflix e com uma carismática apresentadora adolescente com ascendência indiana, Sahana Srinivasan, o programa infanto-juvenil faz uma aproximação interessante da ciência e o cotidiano. Oferece jogos e experimentos para provar teorias científicas de forma simples, didática e, naturalmente, rápida. Cada episódio dura em média 25 minutos, mas os roteiros norte-americanos dão a sensação de menos.
Um deles é sobre mídias sociais. Zé, meu filho, ainda não experimentou o cyberbullying nos seus 7 anos porque não tem celular e eventualmente só acessa uns filtros do instagram da minha conta. Mas no “Eu e o Universo” ouviu dizer que na vida virtual as pessoas têm coragem de dizer coisas que não falariam cara a cara. Que há o Ruim, o Bom e o Oh Meu Deus! da internet. Que um jovem da geração millenium tira em média 25 mil selfies durante a vida e a pose preferida é câmera acima dos olhos e rosto de lado. Mas sem biquinho, por favor!, alerta Sahana.
Que seguir, postar e curtir faz perder coisas que estão diante do seu nariz. A bem da verdade, que voltaram a estar diante do seu nariz, depois de dias e mais dias no quadrado do apartamento e de seu quarto. Ainda não sabemos a extensão dos danos da pandemia.
A amiga cientista do programa explica como funciona o comportamento de manada, seguir o mais popular ou o mais curtido é um comportamento prático e de sobrevivência. E a apresentadora reforça que tudo que faço online afeta a vida real.
Ela dá ainda uma listinha pra explicar o efeito da desinibição online: (desinformação, discurso de ódio etc vamos deixar pros episódios adultos, mas o contexto se aplica bem)
– você não pode me ver
– você não me conhece
– é só uma brincadeira
– não é meu verdadeiro eu
O que a série não consegue explicar – e nós continuamos nesse rastro quase existencial aqui no projeto – é porque as pessoas preferem acreditar em informações falsas ou maquiadas ou distorcidas. No início do episódio, somos apresentados à rainha da Selfie no “Instaglam”, uma jovem com milhares de seguidores por quem as outras jovens pobres mortais se derretem. Então a apresentadora questiona: será que ela é tão real quanto vocês imaginam?
E exibe o making of do último ensaio, em que a rainha chega sem maquiagem num estúdio produzido que dá a falsa impressão de ser sua casa.
Ainda assim, com toda a produção desmascarada, as meninas escolhem “amá-la”. Encarar a realidade dá mesmo trabalho e pode fazer sofrer. Mas isso é o tema de um próximo Ponto de Vista da Paula Campos, aqui do *desinformante, que também está de olhos e coração abertos pra tentar entender as coisas.